

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA
Revista Brasileira de Inteligência
ISSN 1809-2632
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Presidenta Dilma Vana Rousseff
GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL
Ministro José Elito Carvalho Siqueira
AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA
Diretor-Geral Wilson Roberto Trezza
SECRETARIA DE PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E ADMINISTRAÇÃO
Secretário Luizoberto Pedroni
ESCOLA DE INTELIGÊNCIA
Diretor Osvaldo A. Pinheiro Silva
E ditor
Eliete Maria de Paiva
Comissão Editorial da Revista Brasileira de Inteligência
Ana Beatriz Feijó Rocha Lima; Anna Maria Pina; Delanne de Souza; Dimas de Queiroz; Eliete Maria de Paiva; Erika França; G. Oliveira; Osvaldo Pinheiro; Paulo Roberto Moreira; Ricardo Esteves.
Colaboradores
Alessandra Lustosa; Alisson Campos Raposo; Pedro Jorge Sucena; Victor L. P. Faria
Jornalista Responsável
Gustavo Weber – RP 4659
Capa
Wander Rener de Araújo e Carlos Pereira de Sousa
Editoração Gráfica
Jairo Brito Marques
Revisão
L.A. Vieira; Erika França; Uirá de Melo, Geraldo Adelano de Faria
Catalogação bibliográfica internacional, normalização e editoração Coordenação de Biblioteca e Museu da Inteligência - COBIM/CGPCA/ESINT Disponível em: http://www.abin.gov.br
Contatos:
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Tiragem desta edição: 3.000 exemplares.
Impressão
Gráfica – Abin
Os artigos desta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista da Abin.
É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta revista, desde que citada a fonte. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Revista Brasileira de Inteligência / Agência Brasileira de Inteligência. – n. 7
(jul. 2012) – Brasília : Abin, 2005 -
114p.
Semestral
ISSN 1809-2632
1. Atividade de Inteligência – Periódicos I. Agência Brasileira de
Inteligência.
CDU: 355.40(81)(051)
Sumário
5 Editorial
9 CONTROLE DE MATERIAL EXPLOSIVO NO BRASIL
Edson Lima
21 INTELIGÊNCIA E GESTÃO ESTRATÉGICA: uma relação sinérgica Fernando do Carmo Fernandes
31 ACEPÇÃO E CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA DE ESTADO João Manoel Roratto
41 AS TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E A INTELIGÊNCIA DE ESTADO
Marcel de Oliveira
53 TENDÊNCIAS MUNDIAIS E SEUS REFLEXOS PARA A DEFESA BRASILEIRA
Carlos Eduardo Barbosa da Costa
67 PROPRIEDADE INTELECTUAL: uma visão de Contrainteligência Hércules Rodrigues de Oliveira
79 O PAPEL DO SERVIÇO DE INTELIGÊNCIA NA SEGURANÇA DAS INFRAESTRUTURAS CRÍTICAS
Fábio Nogueira
93 SABERES TRADICIONAIS E ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA:
a contribuição do Programa Nacional de Proteção ao Conhecimento Sensível Anna Cruz
103 Resenha
A HISTÓRIA SECRETA DAS FORÇAS ESPECIAIS
Bernardo Wahl G. de Araújo Jorge
109 Resenha
COMO MANIPULAR PESSOAS
Dêner Lima Fernandes Martins
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Editorial
Fazer Inteligência nunca foi tarefa fácil. Requer habilidades especializadas, bom senso, discrição e empenho continuado para acompanhar e analisar cenários e conjunturas cada vez mais inconstantes em um mundo globalizado. É justamente esta diversificação que impulsiona o especialista a buscar, de forma permanente, o aprimoramento e a re- flexão aprofundada sobre aspectos que integram o largo repertório de temas e assuntos de interesse da Inteligência.
Seja em questões relacionadas a parâmetros e bases doutrinárias, seja em desdobra- mentos de aplicações tecnológicas cada vez mais robustas, seja em proposições de melhoria de processos relacionados à produção de conhecimentos, a reflexão indis- cutivelmente cria um ambiente adequado à evolução e ao progresso do saber e do fazer humano. É com a finalidade de renovar esse espírito que a Revista Brasileira de Inteligência chega à sétima edição, trazendo aos leitores um amplo cabedal de temas e, assim, consolidando seu papel como elemento motivador e mediador do debate sobre a Inteligência de Estado.
E esta sétima edição explora assuntos tão abrangentes e diversificados quanto interes- santes. Exemplo disso é o controle de material explosivo no Brasil, assunto do artigo que abre a edição e que repertoria os problemas enfrentados, apontando a necessidade de diretrizes para que a atuação de órgãos públicos e da iniciativa privada seja efetiva- mente integrada.
A edição traz ainda artigo que discute a importância do planejamento estratégico – e decorrente gestão estratégica – para que a atividade de Inteligência não seja vista como um elemento isolado do processo decisório. A sinergia entre a Inteligência e a Gestão Estratégica assume, assim, papel capaz de modernizar o modusoperandi dessa atividade. Nesse sentido, este número da RBI ainda coloca em discussão as diversas acepções do termo ‘Inteligência’, partindo do princípio de que se trata de conceito dinâmico e complexo, marcado pela transformação permanente e incontornável dos Es- tados modernos. É nesse contexto, ainda, que o embasamento de teorias de Relações Internacionais é cotejado com o desenvolvimento da Inteligência de Estado, em que o grau de institucionalização dessa atividade estratégica enseja o estabelecimento de novas formas de diálogo entre a práxis da Inteligência e o arcabouço teórico das rela- ções internacionais. E justamente nesse âmbito, o leitor poderá aprofundar sua reflexão e posicionamento, considerando a política externa brasileira e a análise prospectiva de cenários do mundo até 2040, vislumbrando as ameaças e as oportunidades para
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o setor de Defesa do Brasil, o que justifica, do ponto de vista teleológico, a união de forças no sentido de assegurar a preservação da autodeterminação, dos recursos e dos interesses brasileiros.
Falando em interesses do Brasil, a questão da propriedade intelectual não poderia ter sido negligenciada nesta sétima edição da Revista Brasileira de Inteligência. Se – como se alardeia por aí – conhecimento é poder, a proteção do conhecimento se torna es- sencial ao desenvolvimento de um país. E é exatamente nesse meio que, entre outras possibilidades de inserção, a Contrainteligência apresenta seu savoir-faireno sentido de demonstrar, em um invólucro jurídico apropriado, a importância da proteção e sal- vaguarda da produção científica, técnica e cultural, ao lado de uma política de registro de patentes. Exemplo desse conhecimento processual está no Programa Nacional de Proteção do Conhecimento Sensível, formalmente instituído pela Portaria nº 42, de 19 de agosto de 2009 e cuja implementação é responsabilidade do órgão que de- sempenha o papel de coordenador do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). O programa se dedica, entre diversas frentes de trabalho, à proteção dos chamados saberes – ou conhecimentos – tradicionais, ou seja, aqueles conhecimentos acumulados por comunidades específicas durante longos períodos e que são marcados pela oralidade no processo de transferência. O assunto também é discutido nesta edição da RBI, afinal, não é novidade que esses saberes, quando apropriados por indústrias e empresas, representam uma economia significativa em pesquisas, constituindo uma espécie de atalho para o conhecimento e, a bem da verdade, para o lucro decorrente de sua exploração comercial. Não é à toa, portanto, que o interesse e a cobiça sejam grandes e mereçam acompanhamento sistemático do Estado a fim de evitar prejuízos à indústria nacional, violações à soberania estatal, disseminação de conhecimento sensível e decorrente perda de vantagens competitivas no mercado.
Este número da RBI traz ainda uma discussão bastante atual: Qual o papel do Serviço de Inteligência na segurança das chamadas infraestruturas críticas? É indiscutível que qualquer tipo de avaria e dano a essas estruturas é capaz de provocar uma reação negativa em cadeia, distribuindo prejuízos por onde passa e afetando o dia a dia das pessoas. O artigo expõe o papel do Estado na liderança do processo de proteção desses ativos, contando com a experiência e a expertise da Inteligência para atuar em colaboração com os órgãos responsáveis. Didaticamente, o autor apresenta o processo de proteção das infraestruturas críticas em fases e aproveita para apontar o papel que a Inteligência pode desempenhar nesse processo.
Para finalizar esta sétima edição, a RBI ainda presenteia o leitor com as tradicionais resenhas. Desta feita, publicações de assuntos bem distintos são colocadas em tela.
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A arte (Será?) da coerção e da manipulação é posta em perspectiva, para concretizar objetivos pessoais ou profissionais. Em uma descrição meticulosa, o material discute os capítulos da obra e apresenta medidas de prevenção, ou seja, contramedidas de manipulação. A outra resenha traz a história secreta das Forças Especiais, de 1939 aos dias atuais, aos olhos do acadêmico francês Eric Denécé. O texto destrincha o universo das operações especiais, tema instigante por ser marcado pela atuação, geralmente em efetivo reduzido, de grupos altamente preparados em ambientes absolutamente hostis.
Assim, à vold’oiseau,esta sétima edição da Revista Brasileira de Inteligência chega aos leitores, com a disposição de estimular a reflexão e o debate sobre a atividade de Inteligência como forma de garantir seu desenvolvimento e evolução. Somos gratos a todos os colaboradores, que, com seu conhecimento e disposição, ajudaram a tornar real este sétimo número e convidamos, desde já, integrantes dos órgãos que compõem o Sistema Brasileiro de Inteligência, servidores, pesquisadores, estudiosos e os leitores em geral a participar da revista, enviando suas contribuições para o próximo número.
Boa leitura!
Osvaldo A. Pinheiro Silva Diretor da Escola de Inteligência/Abin
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CONTROLE DE MATERIAL EXPLOSIVO NO BRASIL
Edson Lima*
Resumo
Ocomércio,transporteeusoirregulardeexplosivonoBrasiléfatosignificativoparaa segu- rançapúblicabrasileira. OcontroledematerialexplosivonoBrasilenfrentaóbicesde natureza tático-operacional,legal,políticaerecursoshumanos.Osórgãospúblicoseiniciativa privada carecemdediretrizesdepolíticanacionalparaosetor,queviabilizemaintegraçãoe coorde- naçãodeesforçosparaaprevençãoecombateaousoilícitodeexplosivos.Aomesmo tempo, urgeaadoçãodemedidassetoriaisquegarantamosprocedimentoslocaisdecontrolee fiscali- zaçãodaáreafim.Aintegraçãoentreosórgãosestaduaisefederais,partícipesnesse controle, indubitavelmenteéopontomaisvulneráveldesta rede.
Abstract
Thetrade,transportation,andirregularuseofexplosivesinBrazilisasignificantfact affecting thecountry’spublicsecurity.ThecontrolofexplosivematerialsinBrazilfacesobstacles regar- dingtacticaloperational,legal,andpoliticalaspects,aswellashumanresources. Governmental agenciesandprivatecompanieslacknationalpolicyguidelinesforthesector,whichwould ena- bletheintegrationandcoordinationofeffortstopreventandcombattheillicituseof explosives. Inaddition,itisimperativethatsectorialmeasuresbeimplementedinordertoensure local proceduresofsupervisionandcontrolinthefield.Theintegrationbetweenstateand federal agencies,co-participantsinthisendeavor,isacrucialneed,andalsothemostvulnerable point inthis network.
1 Introdução
Omaterial explosivo, considerado bem de uso duplo ou dual, deman-
da políticas públicas para o controle de seu emprego no âmbito nacional, tanto no nível estratégico quanto no de ações tático-operacionais referentes à fiscali- zação e ao controle. À gestão pública, soma-se a representação participativa das empresas privadas afetas à questão
– construtoras, mineradoras e indústrias de explosivos, por exemplo.
Para efeito deste artigo, material explo- sivo são quaisquer compostos ou subs- tâncias químicas produzidas em labora- tório ou artesanalmente que tenham a capacidade de causar ondas de impacto positivas e negativas, rompimento ou
* Professor de Contraterrorismo, Esint/Abin.
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Edson Lima
destruição do meio ambiente, ou seja, o cenário físico que rodeia o artefato que contenha a referida substância. De acor- do com Pinheiro (2010), pesquisador da Universidade Federal de Santa Maria:
Explosivo é uma substância, ou mistura de substâncias químicas, que tem a pro- priedade de, ao ser iniciado convenien- temente, sofrer transformações químicas violentas e rápidas, transformando-se em gases, que resultam em liberação de grandes quantidades de energia em redu- zido espaço de tempo.
As principais substâncias explosivas co- mercializadas mundialmente na atuali- dade são: pólvora negra ordinária, di- namite, trinitrotolueno (TNT), ciclonita ou ciclotrimetileno-trinitramina (C-4)1 , encartuchados de emulsão em gel, emul- são líquida explosiva, petardos, grana- das, foguetes, munições e substâncias explosivas binárias2. Há outras com re- levante papel na indústria de desmonte de rochas, tais como: nitrato de amônio, ANFO (AmoniumNitrateandFuel Oil) e lamas explosivas – mistura em pro- porção adequada de nitrato de amônio, óleo diesel, água e outros produtos, tais
como pó de alumínio, goma e bórax (PI- NHEIRO, 2010).
O nitrato amônico tornou-se alvo de controle como bem sensível pelos Es- tados Unidos da América (EUA), após ocorrência do segundo maior atentado terrorista em solo americano. Na oca- sião, em 1995, Timothy James McVeigh utilizou 2.300 quilos de uma mistura à base de nitrato amônico3, preparada ar- tesanalmente com adubo e fertilizante agrícola, para destruir o Edifício Federal Alfred Murray em Oklahoma City, ma- tando 168 pessoas e ferindo cerca de outras quinhentas.
A pólvora negra ordinária – mistura de carvão, enxofre e nitrato de potássio – está em desuso, porém ainda é utilizada em minas de pequena envergadura ou para desmontes específicos, por exem- plo, na produção de paralelepípedos.
A dinamite associou o uso da nitroglice- rina com o dióxido de silício, oferecen- do mais estabilidade para os padrões do século XIX. Esse tipo de explosivo tende a perder cada vez mais espaço, devido
1 Ciclotrimetileno-trinitramina é conhecida como C-4, Composição C, e também como RDX, a abreviatura inglesa para RealDeviceExplosive.A hexametilenetetramina (HA), um composto comumente empregado em casos de infecção urinária, serviu como reagente de partida para a preparação de dois explosivos: o RDX e o ciclotetrametilentetranitramina (HerMajesty’s explo- sive- HMX), respectivamente. Ambos são os representantes clássicos dos chamados explosi- vos plásticos, cujas ondas de impacto podem alcançar velocidade superior a 30.000 km/hora.
2 Explosivos binários são aqueles que explodem a partir da mistura adequada de duas diferentes substâncias. Exemplo de substâncias explosivas binárias é mescla de cloro e alumínio com finalidade de provocar uma detonação.
3 Em abril de 1995, McVeigh, veterano da Guerra do Golfo, estacionou no Edifício Federal Al- fred Murray um furgão marca Ryder carregado com a mistura artesanal composta por nitrato amônico, óleo diesel e nitrometano (combustível altamente volátil). Os efeitos da explosão alcançaram a distância aproximada de 45 km do local. As supostas motivações do veterano de guerra eram o ressentimento pela reprovação definitiva para integrar a Força Especial do Exér- cito Americano (Boinas Verdes ou TheGreenBerets) e a retaliação em apoio aos membros da seita ‘Davidiana’ mortos em Waco, Texas/EUA, por agentes federais, em 1993. De acordo com Lou Michel, biógrafo de McVeigh, este teria morrido acreditando que havia triunfado em sua cruzada pessoal, que “vencera o governo por 168 a um”.
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Controle de material explosivo no Brasil
aos níveis de estabilidade alcançados pe- las atuais tecnologias blaster4: explosivos plásticos e emulsões explosivas.
O TNT está muito acima da dinamite e nitroglicerina nos aspectos de segurança e controle da explosão, pois o seu prin- cípio ativo requer uma iniciação5 para que seja detonado, em decorrência de sua baixíssima sensibilidade à fricção e ao calor, característica que possibilita o armazenamento por longos períodos. A dinamite, ao contrário, é instável, apre- sentando sério risco de explosão não controlada durante as fases de armaze- namento e manipulação.
O carro chefe dos explosivos plásticos é o estável C-4, cuja velocidade de des- locamento de ondas é 1,3 vezes mais rápida que a provocada pelo emprego proporcional de TNT. Quanto aos que- sitos de moldagem e segurança, o C-4 é superior ao TNT. Apesar do alto preço do C-4 em relação ao TNT, a maioria dos terroristas internacionais prefere o emprego do C-4, motivada pela relação custo benefício, proporcionada pela im- permeabilidade, estabilidade e plasticida- de do material. A moldagem do material permite o direcionamento da explosão sem necessidade de emprego concomi- tante de acessórios. Ademais, a camada plástica que envolve a substância explo- siva a protege contra a sensibilidade de fricção e a mantém impermeável.
O C-4 logrou alcançar a confiança dos militares estadunidenses, ao passo que o Exército Brasileiro expressa preferên- cia pelo TNT. Embora o C-4 nacional apresente baixo preço em relação ao im- portado, os órgãos de segurança pública brasileira e as Forças Armadas preferem empregar o TNT, pois este, quando as- sociado taticamente com outros explo- sivos potencializadores, consegue fazer frente ao poder de rompimento do C-4 americano. Esse recurso criativo dos brasileiros seria motivado pelo orçamen- to limitado para aquisição de explosivos.
As munições e granadas também mere- cem destaque quando se trata de explo- sivos, pois são utilizadas para instrução militar ou ações tático-operacionais em segurança pública ou conflitos de guer- ra, guerrilhas, ataques terroristas e assal- tos criminosos convencionais. O descar- te inadequado desses artefatos implica risco para a sociedade civil e mais gastos públicos nos atendimentos de neutraliza- ção de artefatos órfãos.
Já as indústrias da construção civil, mine- ração e demolições preferem o uso dos encartuchados de emulsão líquida ou em gel. Grandes quantidades de gel lí- quido são empregados na forma binária, descarregados por caminhões-tanques, misturados adequadamente, e depois in- seridos em fendas, fissuras, perfurações, para rompimento de grandes elevações
4 Blaster é um termo inglês que faz parte do glossário universal dos profissionais explosivistas e possui vários significados: a. explosão; b. profissional com certificação oficial para exercer a função de técnico explosivista; c. equivalente ao termo ‘encarregado de fogo’– explosivista com responsabilidade técnica referente ao plano de fogo de uma mineradora, construtora ou empresa de demolição.
5 A iniciação é o uso de uma substância explosiva de menor intensidade para deflagrar a deto- nação de outra substância mais potente. Exemplo de iniciador é o uso de espoleta ou cordel acoplado ao TNT.
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Edson Lima
rochosas de dureza média e alta; tam- bém são úteis para abrir estradas e tú- neis. A emulsão apresenta resistência à água, além de proporcionar manejo com ótimo nível de segurança, em razão de sua estabilidade.
No Brasil, há várias empresas que pro- duzem ou representam encartuchados de emulsão e gel explosivo, assim como acessórios iniciadores e potencializado- res para detonação desses explosivos. Devido ao seu parque industrial de ex- plosivos, o Paraná é o estado que mais desperta interesse dos profissionais ex- plosivistas quanto à formação continu- ada, atraindo a atenção da maioria dos esquadrões de bomba de todo o país.
2 Incidentes e Ocorrências
Os registros de ocorrências de apreen- sões de cargas irregulares ou ilícitas de encartuchados de emulsão e gel líqui- do explosivo, a partir da década do ano 2000, indicam a crescente onda de des- vio de explosivos, que, a priori, seriam para atendimento de mineradoras e em- presas de engenharia de grandes obras, em situação regular.
De acordo com a Diretoria de Fiscaliza- ção de Produtos Controlados (DFPC) do Exército Brasileiro (EB), houve aumento de cerca de 170% de desvio de encartu- chados de emulsão em relação ao índice de 2009 a 2010. Os estados onde hou-
ve maiores índices de furtos não recupe- rados foram Rio Grande do Sul (373 kg) e Alagoas (300 kg), de um total de cerca de uma tonelada.
No que tange ao roteiro de desvio, os explosivos são produzidos e comercia- lizados no Brasil, em seguida, levados ao Paraguai6 e, depois, trazidos de vol- ta irregularmente ao Brasil, onde se- riam destinados ao uso em garimpos clandestinos, mineradoras irregulares, pesca predatória e assaltos a bancos7 . Os encartuchados de emulsão são os explosivos preferidos de assaltantes a caixas eletrônicos.
A exploração de brita, garimpos clandes- tinos e construções irregulares no inte- rior das regiões Centro-Oeste e Norte estimulam o transporte irregular de ex- plosivos via ônibus coletivos que partem do Paraná com destino ao Mato Grosso, Goiás, Rondônia e Pará.
Adubos e fertilizantes à base de nitra- to de amônio aparecem também como alvos de furtos e roubos em registros da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e Polícias Militares (PMs) em São Paulo, Minas Gerais e Goiás. De acordo com pesquisa da Universidade de São Paulo (MATTHIESEM; DELEO, 2003), adu- bos e fertilizantes são os maiores alvos de roubos e furtos nas zonas rurais de produção agrícola. As autoridades de segurança pública supõem que o destino de adubos e fertilizantes furtados e rou-
6 Exemplo emblemático de desvio de 6000 quilos de gel explosivo apreendido pela Polícia Ro- doviária Federal e Polícia Militar do Paraná, em Foz do Iguaçu, em setembro de 2003.
7 Em 2009, foram registrados 27 casos de assalto a banco na região Nordeste – 13 destes no interior do estado da Paraíba.
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Controle de material explosivo no Brasil
bados seja apenas para comércio ilícito e abastecimento do mercado paralelo agrí- cola, sem que haja exploração do mesmo para confecção de explosivos artesanais.
Os registros de atendimentos a ocorrên- cias envolvendo descarte de granadas e munições antiaéreas em vias públicas, praças e órgãos públicos são rotineiros de norte a sul do País, exigindo o melhor aparelhamento dos esquadrões de bom- ba de Companhias de Operações Espe- ciais das PMs e de Grupos Táticos Ope- racionais das Polícias Civis Estaduais.
Em 2007, o Primeiro Comando da Ca- pital (PCC) foi assinalado pelo Departa- mento de Polícia Federal (DPF) por pos- suir granadas, lançadores de granadas, petardos (tipo de explosivo), foguetes, lançadores de foguetes, metralhadoras, pistolas e IEDs. A apreensão desses ar- tefatos foi feita pelo DPF em Pradópolis/ SP, a 320 km da capital do estado, e cha- mou a atenção da mídia e autoridades de segurança pública quanto ao alto poder de fogo e destruição dos explosivos, que por lei são de restrito uso militar.
3 Controle e Fiscalização
O controle e a fiscalização de material explosivo no Brasil são feitos pela DFPC 8
do EB, por meio dos Serviços de Fiscali- zação de Produtos Controlados (SFPCs) distribuídos por doze regiões militares do território nacional.
Amparada pelo Decreto nº 24.602, de 6 de julho de 1934 – que dispõem sobre instalação e fiscalização de fábricas e co- mércio de armas, munições, explosivos, produtos químicos agressivos e matérias correlatas –, também, pelo Regulamen- to para a Fiscalização de Produtos con- trolados (R-105) aprovado pelo Decreto Federal nº 3.665 de 20 de novembro de 2000, que revogou o Decreto nº 2.998, de 23 de Março de 1999, e reforçada pela Instrução Técnico-Administrativa nº 03/94 da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) do Exér- cito Brasileiro, é atribuição da DFPC a execução e planejamento da fiscalização de fábricas e comércio de fiscalização de Produtos Controlados.
O controle e a fiscalização de material explosivo no Brasil são feitos [...] pelo Serviços de Fiscalização de Produtos Controlados (SFPCs)
Certas regiões militares, por sua dimen- são geográfica e limitações logísticas, não possuem representação da DFPC em todos os estados. Ademais, mesmo nos estados que a possuem, seria utópico co- brir todas as microrregiões estaduais. Em geral, tendo em vista o reduzido número de funcionários dos SFPCs, o trabalho de fiscalização restringe-se a atuar em res- posta a denúncias de concorrência desleal apresentadas por empresas privadas.
8 A criação da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) está amparada no Decreto nº 87.738, de 20 de outubro de 1982. Já a portaria 014 – DMB, de 12 de junho de 2000, estabelece tempos mínimos de arquivamento de documentos relacionados com a fi scalização de produtos controlados. Outra importante portaria, a 01-DPFC, delega competência para aplicação de multa simples mínima, média e máxima por parte das SFPC regionais.
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Comprar, armazenar, transportar, reven- der e manipular explosivos em demoli- ção ou desmonte de rocha constituem as chamadas ações de manejo de explo- sivos, sujeitas a licença específica. Para obtenção dessa licença, as empresas do ramo de demolição, construção civil, mi- neradoras e transportadoras de material explosivo necessitam submeter-se a vis- torias, tanto veicular quanto de logística de armazenamento de cordéis, espole- tas, iniciadores, boosters, gel explosi- vo e, principalmente, encartuchados de emulsão.
Quaisquer empresas privadas que mane- jam explosivos estão obrigadas a regis- trar-se no SFPC de sua respectiva região. Também é compulsória a contratação de um profissional técnico explosivista que possua a certificação blaster registrada na Secretaria de Segurança Pública Es- tadual (SSP), ou seja, em uma delegacia de Polícia Civil designada pelo secretário de segurança pública. Cada estado da Federação, de forma discricionária, deci- de onde alocar os responsáveis por esse tipo de controle. Assim, o SFPC fiscaliza e controla a empresa, e o Grupo de Tra- balho da Segurança Pública é responsá- vel pelo profissional blaster.
[...] é compulsória a contratação de um profissional técnico explosivista que possua a certificação blaster
A SSP também tem competência para fiscalizar a execução do plano de segu- rança sob responsabilidade do encarre- gado de fogo da empresa. O plano de
fogo – planejamento de todas as ações que envolvam determinada explosão controlada – coincide com as normas de manejo de explosivo preconizadas pela DFPC. Doutrinariamente, as funções do responsável técnico são a essência da segurança rotineira de uma empresa que lida com explosivos.
Em alguns estados, existem situações que vão desde a ausência de delegacia especializada até a falta de grupo de tra- balho institucionalizado legalmente. No Paraná, o maior centro produtor de ex- plosivos do país, a responsabilidade pelo controle de registro blaster recai sobre a Delegacia de Armas e Munições (Deam), que foi ameaçada de ser extinta entre 2010 e 2011.
Oaumento nas ocorrências de apreensão de encartuchados de emulsão demons- traria a necessidade de revisão de estra- tégias de controle da atividade blaster no setor de desmonte de rochas. Os encar- tuchados de emulsão e demais explosi- vos e acessórios estão configurados em um sistema de rastreamento que utiliza, geralmente, código de barras indicando a origem do explosivo, país, estado, in- dústria e cliente cadastrado. No entanto, este sistema pode ser facilmente burlado por meio da raspagem dos códigos.
Outros acessórios, como cordéis e boos- ters, possuem um envoltório de plástico, portam gravação incrustada no próprio material e são mais difíceis de serem adulterados. Países como o Japão, Ca- nadá e EUA utilizam um sistema invisível de marcação, ou seja, visível somente
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Controle de material explosivo no Brasil
com o emprego de equipamento apro- priado para tal.
O procedimento ideal para reconheci- mento da origem de emulsões seria a obrigatoriedade legal de inserção, por parte dos fabricantes, de componentes identificadores na própria substância. Cada fábrica utilizaria um componente único, registrado sigilosamente na agên- cia ou órgão central de controle de ma- terial explosivo.
Quanto à fiscalização de adubos e fer- tilizantes (destacando-se a relevância do nitrato amônico como matéria prima para confecção de IED), a atribuição é do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento ou seus delegados regio- nais estaduais, as Secretarias Estaduais de Agricultura, Pecuária e Abastecimen- to e outros órgãos afins. Essa fiscalização está amparada pela Lei nº 6.894, de 16 de dezembro de 1980, alterada pela Lei nº 6.934, de 13 de julho de 1981.
Na esfera estadual, o melhor exemplo é o caso da legislação do Paraná, que preconiza, por meio da Lei nº 9.056, de 02 de agosto de 1989, a necessidade de prévio cadastramento perante a Se- cretaria Estadual de Agricultura como exigência para o exercício da produção, distribuição e comercialização de ferti- lizantes, corretivos, inoculantes ou bio- fertilizantes destinados à agricultura na- quele estado. A mesma lei também exige a atuação de técnico responsável espe- cializado (técnico agrônomo, químico ou farmacêutico, de acordo com cada caso)
nos locais onde haja manejo das substân- cias já mencionadas.
Nem todos os estados possuem regu- lamentação que permita a operaciona- lidade da lei federal, e aqueles que já a possuem ainda carecem de recursos logísticos para operacionalizar a fiscali- zação in loco determinada legalmente. O principal argumento das secretarias de agricultura estaduais é a carência de quatro itens: recursos humanos, verba para deslocamentos ao interior do es- tado, motivação dos agentes públicos e política de valorização da carreira (baixos salários, carência de benefícios sociais e risco para integridade física no momento da autuação).
É comum, nas secretarias estaduais, ser o agente público responsável pela exten- são o mesmo que a fiscaliza. Na opinião de técnicos entrevistados, tal atitude se- ria um óbice tanto para fiscalizar com efetividade quanto para a efetividade da assessoria extensiva. Esta última tem pa- pel assessório com finalidade educativa; por sua vez, a fiscalização tem caráter repressivo e punitivo.
4 Integração
Geralmente, as Polícias Militar e Civil são as primeiras acionadas para atendimento de neutralização de explosivos detecta- dos pela sociedade civil. Em razão da alta popularidade do número telefônico 190, emergência policial, este canal cos- tuma ser mais acionado que o 197 da Polícia Civil, o 191 da PRF e o 193 do Corpo de Bombeiros.
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Edson Lima
A ausência de consenso entre as Polícias Militar e Civil quanto às atribuições dos gru- pos tático-operacionais da Polícia Civil e à atuação do serviço de Inteligência da Polícia Militar, conhecida como PM2, é fator que dificulta a integração entre os esquadrões de bombas de ambas as instituições na esfera estadual, mesmo que, em muitos casos, es- tejam subordinadas à mesma SSP .
Não há foros institucionalizados e con- solidados para discussão de programas, planos e projetos regionalizados dentro de cada estado que reúnam os repre- sentantes da DFPC, DPF, PM, Polícia Civil, Secretaria de Defesa Civil, Corpo de Bombeiros, Secretaria de Educação e Secretaria da Saúde. O Sistema Brasilei- ro de Inteligência (Sisbin) local seria uma iniciativa que avança lentamente para solucionar a falta de coordenação entre órgãos dessa natureza, e quiçá venha a ser o foro para essa demanda.
A doutrina única repercutiria na busca de procedimentos operacionais padronizados (POP) para os esquadrões de bomba e no estabelecimento de Matriz Curricular Nacional.
Houve significativo avanço nessa área com o advento da Comissão Nacional de Doutrina Antibombas, que funcionou em 2010 no âmbito da Secretaria Nacional de Segurança Pública, responsável por reunir representantes do Distrito Federal e qua- torze estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Amazonas,
Ceará, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Alagoas, Amapá e Mato Grosso do Sul. Os mem- bros da comissão eram servidores da Polí- cia Civil, PM, DPF, Corpo de Bombeiros e Secretaria Nacional de Defesa Civil.
A comissão avançou no sentido de bus- car doutrina única de enfrentamento de acidentes, incidentes e atentados que utilizem material explosivo. A doutrina única repercutiria na busca de proce- dimentos operacionais padronizados (POP) para os esquadrões de bomba e no estabelecimento de Matriz Curricular Nacional9, que serviria como referencial para ações formativas de profissionais da área de segurança pública.
A Matriz, como é normalmente chamada, era aspiração preconizada, desde 2003, pelo Seminário Nacional sobre Segurança Pública, no âmbito do Sistema Único de Se- gurança Pública, depois ampliada em 2005, com a inclusão de dois documentos – as Diretrizes Pedagógicas para as Atividades Formativas dos Profissionais da Área de Segurança Pública e a Malha Curricular – assim descritos, pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (BRASIL, 2010):
[...] as Diretrizes Pedagógicas para as Ati- vidades Formativas dos Profissionais da
Área de Segurança Pública são um con- junto de orientações para o planejamento, acompanhamento e avaliação das Ações Formativas, e a Malha Curricular, um nú- cleo comum composto por disciplinas que congregam conteúdos conceituais, proce- dimentais e atitudinais, cujo objetivo é ga- rantir a unidade de pensamento e ação dos profissionais da área de Segurança Pública.
9 Matriz Curricular Nacional tem por objetivo ser um referencial teórico-metodológico que orienta as ações formativas dos profissionais da área de segurança pública – Polícia Militar, Polícia Civil e Bombeiros Militares.
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Controle de material explosivo no Brasil
Quanto à Inteligência Policial, o foco tem recaído sobre o aspecto investigativo, a busca de dados para subsidiar investi- gações criminais. A maioria das Polícias não conta com setor de Inteligência es- tratégica; a exceção cabe ao DPF, em sua estrutura, setor específico para produção de conhecimento estratégico com a fina- lidade de assessoramento de sua respec- tiva diretoria geral.
Os dados coletados pelos esquadrões de bombas na esfera local não passam por processamento de Inteligência, são su- bempregados, fazendo parte apenas de estatísticas de atendimento.
5 Conclusão
O acompanhamento do controle e fis- calização de material explosivo requer agenda de governança com foco que transcenda os aspectos burocráticos e gerenciais, buscando resultados e parti- cipação dos atores envolvidos.
A estratégia nacional que direcione as ações setoriais locais prioriza estabelecer melhor comunicação em rede com todos os agentes públicos comprometidos, nas esferas federal, estadual e municipal. As- sim, a integração de esforços de diferen- tes órgãos públicos pode ser alcançada, caso haja foro nacional de discussão de estratégia, ações e procedimentos, inter- câmbio de dados e conhecimentos, trei- namentos e experiências. Deve-se buscar o compartilhamento de banco de dados centralizado referente a encarregados de fogo, empresas certificadas, ocorrências, laudos periciais, estudos de caso e re-
latórios de Inteligência estratégica, com mapeamentos e tendências de emprego irregular ou ilícito de explosivos.
A coordenação centralizada também seria foro para discussões acerca do ali- nhamento das legislações regionais e na- cional; ademais, legitimaria as ações em prol de doutrina, procedimentos e apa- relhagem padronizada para as equipes locais de repressão e neutralização de artefatos explosivos.
Já houve tentativa inicial de se estabelecer essa coordenação central por parte da Senasp, com a designação da Comissão Nacional Antibomba, que atentou prin- cipalmente para as questões doutriná- rias e de aparelhamento dos esquadrões de bombas com vistas à segurança dos grandes eventos. Tal comissão funcionou de 2009 até dezembro de 2010, porém no momento se encontra desativada.
Os acessos facilitados à matéria prima e instrução de preparo de IED são vulne- rabilidades que seriam melhor enfrenta- das caso fossem adotadas tecnologias de rastreamento de explosivo similares aos modelos japonês, estadunidense ou ca- nadense, que empregam a inserção mes- clada ao explosivo de substâncias quími- cas identificadoras.
O acesso ao explosivo seria fruto de desvio irregular de material comprado de fábricas, revendedores nacionais e mineradoras; por sua vez, a tecnologia de manejo para atividades ilícitas seria repassada por ex-militares ou ex-funcio- nários de mineradoras.
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Atualmente, a forma predominante de uso irregular de explosivos visa o lucro financeiro ilícito; há, porém, a possibilida- de de que as vulnerabilidades de contro- le possam ser exploradas para ações de cunho ideológico, apocalíptico, religioso, político e ecológico em futuro próximo.
O estreitamento das vias de comunica- ção do Estado com as empresas privadas que lidam com manejo de explosivos, tanto na produção e no comércio quanto na aplicação de atividades fins, é crucial para alimentar os bancos de dados esta- tais com informações atualizadas acerca do destino e demanda de explosivos no Brasil. Também contribuiria para esse fim o potencial intercâmbio acadêmico entre os técnicos públicos e privados.
A complexidade do tema exige evitar-se o reducionismo e ampliar-se a partici- pação, também, de representantes dos campos da educação, cultura, saúde, de- fesa civil e agricultura.
A consolidação de foro representativo com amplitude seria o primeiro pas- so para planejar e organizar as ações pragmáticas do controle de explosivos no País, ressaltando-se a importância do Gerenciamento de Crises, especifi- camente no item que diz respeito aos casos que abarquem o uso ilícito de ex- plosivos, por exemplo, em edificações públicas, durante apoderamento ilícito de aeronave e outras ameaças à incolu- midade pública.
O gerenciamento de crises que envolvam explosivos exige o conhecimento preci- so do papel de cada órgão por parte dos membros da central coordenadora. E somente a qualificação atualizada de recursos humanos, legislação e normas claras, logística apropriada, comunicação ágil e treinamentos simulados da central coordenadora assegurariam o êxito do enfrentamento de cada crise.
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Controle de material explosivo no Brasil
BRASIL. Lei nº 6.934, de 13 de julho de 1981. Altera a Lei nº 6.894, de 16 de dezembro de 1980, que dispõe sobre a inspeção e fiscalização da produção e do comércio de fertilizantes, corretivos, inocu- lantes, estimulantes, ou biofertilizantes, destinados à agricultura, e dá outras providências. Diário Oficial [da]RepúblicaFederativadoBrasil, DF, 15 de jul. 1981. Disponível em:<http://www.jusbrasil.com. br/legislacao/busca?q=lei+6.934%2C+de+13+de +julho+de+1981&s=legislacao>. Acesso em: 10 jan. 2012.
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INTELIGÊNCIA E GESTÃO ESTRATÉGICA: uma relação sinérgica
“Quandonãosetemsuperioridadeabsoluta, deve-se produzirsuperioridaderelativa,pormeiodouso ha- bilidosodosrecursosdisponíveis”. (Clausewitz).
Fernando do Carmo Fernandes*
Resumo
Quandosediscutemodernização,quebradeparadigmasereinvençãonaformadeatuar da Inteligência,éprecisoentender,antesdemaisnada,queestaatividade,sejadeEstado, seja corporativa,nãopodeservistacomoumelementoisoladodoprocessodecisório.Seu esforço deproduçãodeconhecimentosdeveserorientadoporumplanejamentoestratégicoe sua atuaçãodevesersinérgicaàgestão estratégica.
1 Introdução
No momento em que se fala tanto em modernização, quebra de paradigmas
e reinvenção na forma de atuar da Inteli- gência, a resposta para tudo isso não está para ser inventada e, sim, recuperada.
As transformações ocorridas no mundo nos últimos cinquenta anos, sem dúvi- da, impuseram à atividade de Inteligên- cia constantes mudanças de foco. Como não poderia deixar de ser, o momento histórico vivido lhe cobrava atuações de maior ou menor amplitude e relevância, orientando seu esforço de produção de conhecimento normalmente para assun- tos conjunturais. Capitalismo x comunis-
mo, espionagem econômica, terrorismo, no campo internacional. Corrupção, es- pionagem política, crime organizado, no campo nacional.
O objetivo deste artigo é resgatar o pa- pel estratégico da atividade de Inteligên- cia, destacando-lhe a real dimensão do assessoramento que lhe cabe, em todas as áreas e segmentos da sociedade e do Estado. Esse assessoramento dirige-se a decisores e gestores do mais alto nível em subsídio a formulação e implementa- ção de políticas, estratégias e ações que possibilitem o crescimento e o desenvol- vimento sustentável do país.
* Autor do livro Fundamentos da Inteligência Competitiva. Mestre em Aplicações, Planejamento e Estudos Militares. Pós-graduação em Inteligência e Gestão Estratégica. Foi instrutor da Esi- mex e Esint/Abin, Faculdade Albert Einstein, Universidade do Distrito Federal. Foi Presidente da ABRAIC e Vice-Presidente. Diretor de Inteligência do SAGRES e sócio-diretor da SLA Con- sultoria em Estratégica.
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Fernando do Carmo Fernandes
2 Inteligência
Diversos estudos e exemplos históricos confirmam que a busca, pelo homem, por informações diferenciadas que lhe garantisse vantagem em suas decisões e ações remontam à antiguidade. Com o passar do tempo, intensificou-se o em- prego de espiões, à medida que crescia o entendimento sobre o valor das informa- ções a respeito das intenções e potencia- lidades de adversários e inimigos.
No entanto, é no período compreendido entre as duas grandes guerras que a ati- vidade de Inteligência assiste a avanços significativos nos resultados obtidos. A utilização de metodologias mais apro- priadas e o desenvolvimento de um tra- balho de orientação analítica deram-lhe um caráter mais profissional e eficaz.
Até então a Inteligência havia sido uma atividade voltada praticamente para cam- panhas e ações militares. Com o tér- mino da 2ª Grande Guerra, o período seguinte é marcado pela necessidade de reconstrução dos países nela envolvidos e pelas disputas políticas ideológicas consequentes.
É nesse contexto que a atividade de In- teligência é percebida como instrumento essencial para a segurança e desenvol- vimento dos estados nacionais, levando muitos deles a criar ministérios e servi- ços orientados para tal, com diretrizes, aparelhamento e orçamento próprios.
Como parte de seu processo de siste- matização, em 1949, Sherman Kent, em sua obra StrategicIntelligenceFor Ame- ricanWorldPolicy, caracteriza a Inteli- gência com tríplice significado: atividade, organização e produto1 .
Por atividade, entende-se o conjunto de tarefas, rotinas, metodologias, processos próprios, adotados para a consecução de um determinado objetivo. Por produto, o resultado de um processo metodológico próprio (atividade), que tem por finalida- de prover um determinado usuário de um conhecimento diferenciado, em auxílio ao processo decisório (FERNANDES, 2006). Tal entendimento universalizou-se.
Em 1957, Washington Platt define In- teligência como “um termo específico e significativo, derivado da informação, in- forme, fato ou dado que foi selecionado, avaliado, interpretado e, finalmente, ex- presso de forma tal que evidencie sua im- portância para determinado problema de política nacional”. (PLATT, 1974, p.30)
Na obra de Fernandes (2006) e Platt (1974) fica evidente o caráter analítico e estratégico da atividade. É importan- te destacar que, quando se adjetiva algo como estratégico, duas premissas devem estar contidas na nova ideia formulada: longo prazo e grande abrangência das ações.
Após o término do conflito Leste-Oeste, analistas de Inteligência dos principais
1 Como forma de pontuar a diferença entre atividade e produto, quando este artigo se referir a organização, sistema, atividade ou profissional dessa atividade, será utilizado Inteligência com “I” maiúsculo. Quando se referir ao produto (conhecimento) produzido pelo profissional de Inte- ligência, será empregado inteligência, com “i” minúsculo.
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Inteligência e Gestão Estratégica: uma relação sinérgica
serviços secretos do mundo passaram a ser contratados por grandes organizações empresariais para realizarem trabalhos de análises estratégicas. Tais análises, com foco nos movimentos futuros de concor- rentes e do ambiente de negócio, visavam dar melhor orientação às ações daquelas corporações, dando origem ao que co- nhecemos hoje por Inteligência Empresa- rial ou Competitiva. Fuld (1994, p. 24), ao abordar a Inteligência Competitiva, descreve a Inteligência como “proposi- ções que lhe permitem tomar decisões”
... o caráter analítico e estratégico da atividade [...] quando se adjetiva algo como estratégico, duas premissas devem estar contidas na nova ideia formulada: longo prazo e grande abrangência das ações.
Em face dos inúmeros conceitos e enten- dimentos existentes sobre a atividade de Inteligência no Brasil, para efeito deste trabalho, será utilizada uma definição que abriga os conceitos formulados por Kent, Platt e Fuld. Tal definição é adotada pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão responsável pela formulação da Doutrina Nacional de Inteligência:
A atividade de Inteligência é o exercí- cio permanente de ações especializadas orientadas para a obtenção de dados, pro- dução e difusão de conhecimentos, com vistas ao assessoramento de autoridades governamentais, nos respectivos níveis e áreas de atribuição, para o planejamen- to, a execução e o acompanhamento das políticas de Estado. Engloba, também, a salvaguarda de dados, conhecimentos, áreas, pessoas e meios de interesse da
sociedade e do Estado. (BRASIL, 2004)
Um aspecto que se torna bastante rele- vante na efetividade do trabalho da In- teligência é que seu esforço de produ- ção de conhecimento deve ser orientado para o futuro, pois é o futuro que traz mudanças, em termos de tecnologia, meio ambiente, segurança, relações co- merciais ou políticas. Dessa forma, a ati- vidade de Inteligência deve possibilitar a prospecção de fatos e eventos.
3 Administração estratégica
Maximiniano (2000, p. 392) lembra que “depois de muita aplicação e de- senvolvimento em situações militares, o conceito de estratégia e as técnicas da administração estratégica chegaram às organizações em geral, especialmente às empresas”.
Até a década de 50 do século passado, o ritmo de mudanças na sociedade era relativamente lento e uniforme. A partir daí, o mundo começou a assistir a uma nova dinâmica. Novas tecnologias e, associadas a elas, mudanças significati- vas no comportamento social tornavam o ambiente dos negócios turbulento e em constante mutação. Essa realidade passou a repercutir diretamente nas em- presas, exigindo-lhes novos arranjos or- ganizacionais e novas formas de gestão (TAVARES, 2000).
Em meados de 1960, como resposta à obsolescência dos tradicionais planeja- mentos de médio e longo prazos e à di- ficuldade desses instrumentos se adapta- rem aos novos desafios, outros métodos de planejamento foram desenvolvidos sequencialmente: planejamento financei-
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ro, planejamento de longo prazo, plane- jamento estratégico (FERREIRA; REIS; PEREIRA, 2002).
3.1 Planejamento Financeiro
Este tipo de método privilegiava o orça- mento como o principal instrumento de controle e operacionalização de gestão. Esse modelo baseava-se na previsão de receitas, na estimativa de vários gastos e sua classificação e agrupamento em ru- bricas (TAVARES, 2000).
3. 2 Planejamento de longo prazo
O planejamento de longo prazo foi cal- cado na crença de que “o futuro pode ser melhorado por uma intervenção ativa no presente” (ACKOFF, 1976, apud TA- VARES, 2000, p.24). Estruturou-se com o estabelecimento de objetivos de longo prazo, onde a alocação e o controle dos recursos financeiros necessários para sua implantação representavam a última eta- pa do processo.
3.3 Planejamento Estratégico
De acordo com Ferreira, Reis e Pereira (2002), o planejamento estratégico surgiu como um método estruturado para cons- truir o futuro das organizações. Sapiro e Chiavenato (2003), citado pelos autores acima, definem planejamento estratégico como um processo de formulação de es- tratégias organizacionais no qual se busca a inserção da organização e de sua missão no ambiente em que ela está atuando.
O planejamento estratégico passou a enfocar o “como atuar”, tendo como
referência as ocorrências e mutações de mercado. Desta forma, a ênfase, que no planejamento a longo prazo estava no prazo para o cumprimento dos objeti- vos, no planejamento estratégico passou a ser na compreensão dos fenômenos que ocorrem no mercado e no ambiente (TAVARES, 2000).
4 Gestão Estratégica (GE)
A partir dos anos 80 aconteceram ex- pressivas mudanças na economia, in- cluindo a abertura de mercados, o fluxo intenso de informações, o encurtamento de ciclo de vida dos produtos e a ne- cessidade de inovações e de soluções estratégicas negociais. Essas mudanças, velozes e contínuas, passaram a impactar a gestão dos negócios e a imprimir a am- pliação dos limites de atuação da admi- nistração, que avançaram para além dos muros da empresa. A luta pela sobrevi- vência empreendida pelas organizações ficou mais explícita.
Mais do que nunca, atores e variáveis externos (condicionantes políticas, eco- nômicas, ambientais, sociais, legais e tecnológicas, além dos concorrentes, fornecedores, clientes, novos entrantes, produtos substitutos, por exemplo), ne- cessitavam ser acompanhados pelo im- pacto que poderiam causar nos negócios da empresa. Nesse momento, segundo Ferreira, Reis e Pereira (2002), o enfo- que do planejamento estratégico ganhou amplitude, profundidade e complexida- de, dando origem à administração estra- tégica ou gestão estratégica.
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Inteligência e Gestão Estratégica: uma relação sinérgica
4.1 GE - um modelo com foco no futuro
Em sua obra, Tavares (2000) explica que a GE veio como uma resposta a um dos principais problemas apresentados pelo planejamento estratégico: o de sua im- plementação. A GE é um conjunto de atividades planejadas, estratégicas e or- ganizacionais, que visa integrar a capa- cidade interna ao ambiente externo. As- sim, esse modelo de gestão busca reunir planejamento estratégico e administrati- vo em um único processo.
A GE é um processo sistemático, planeja- do, gerenciado, executado e acompanha- do sob a liderança da alta administração da instituição, envolvendo e comprome- tendo todos os gerentes e colaboradores da organização. Visa assegurar o cresci- mento da instituição, a continuidade de
sua estratégia, de sua capacitação e de
sua estrutura, possibilitando-lhe enfren- tarasmudançasobservadasou previsí- veisnoseuambienteexternoou interno,
antecipando-seaelas (nosso destaque) (COSTA, 2008, p. 56). A concepção deste modelo é implementar ações or- ganizacionais para fazer frente a eventos prospectados, garantindo, assim, vanta- gem competitiva à organização.
Trevisan (COSTA, 2007) destaca a ne- cessidade de as empresas se empe- nharem cada vez mais em um trabalho sistemático de monitoramento e análise do macroambiente, como um radar em constante varredura, para detectar ame- aças e oportunidades no seu mercado. Esse monitoramento garante o principal insumo da vantagem estratégica compe- titiva de uma organização: a informação oportuna e contextualizada.

Figura 1 – Do planejamento financeiro à gestão estratégica (TAVARES, 2000, p.23)
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5. A convergência entre Inteligência e Gestão Estratégica
Já em 1957, Washington Platt (1974, p. 31) estabelecia a contextualização da Inte- ligência com o planejamento estratégico:
A Inteligência estratégica [...] busca, principalmente, guiar a formulação e a execução de medidas de segurança na- cional, em tempo de paz, e a conduta de operações militares, em tempo de guerra, bem como o desenvolvimento do planejamento estratégico no período de após-guerra.
Para Clauser e Weir (1975), a ligação da Inteligência com a gestão é inequívoca, quando afirmam que a Inteligência – ou conhecimento acionável2 – é produzido para que os planejadores e formuladores de política possam tomar decisões efeti- vamente acertadas.
Tavares (2000) explica em que se deve basear o moderno modelo de gestão para o apoio efetivo à decisão:
Será baseado na coleta, tratamento e difusão da informação que terá maior impacto no processo decisório. [...]. Os dados deverão ser escolhidos com rele- vância e propósito e, em alguns casos, deverão ser obtidos imediatamente após sua ocorrência, para orientar ações ime- diatas, como, por exemplo, aplicações financeiras. Em outros casos, deverão ser aprofundados e coletados, de forma mais abrangente e demorada para orientar, por exemplo, a substituição de uma tecnolo- gia de processo. Outras vezes, abrange- rão ambas as situações.
Fica evidente que as tarefas que se desen- volverão neste modelo de gestão exigirão informações especializadas e seletivas. O resultado da análise de dados e infor- mações coletados do ambiente que irá embasar a tomada de decisão, gerando recomendações que consideram eventos futuros, nada mais é que inteligência3, no seu perfeito sentido doutrinário.
Outra similaridade com a Inteligência en- contramos nas palavras de Costa (2000, p.1), quando o autor destaca o objetivo de trabalhar com foco no futuro e a res- ponsabilidade da alta administração da or- ganização pela condução desse processo:
A Gestão Estratégica é um processo de transformação organizacional voltado para o futuro, liderado, conduzido e exe- cutado pela mais alta administração da entidade, com a colaboração da média gerência, dos supervisores, dos funcio- nários e demais colaboradores. [...] Seu objetivo principal é assegurar o cresci- mento, a continuidade e a sobrevivência da entidade a longo prazo.
Na GE, o futuro não é visto como uma mera extrapolação do passado, mas o resultado das ações presentes, orienta- das para uma situação desejável a médio e longo prazos. Ou seja, um trabalho de se “construir” o melhor amanhã possível. Desta forma, a Inteligência passa a ser o macroprocesso capaz de dar o suporte necessário ao modelo de gestão que mira o futuro e busca a integração das ações em seus diversos campos de atuação.
2 Conhecimento que subsidia a ação.
3 Este autor diferencia Inteligência de inteligência. O primeiro refere-se à atividade. O segundo, produto dessa atividade.
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Inteligência e Gestão Estratégica: uma relação sinérgica
Percorrendo-se as etapas de um proces- so de GE, não é difícil identificar a par- ticipação efetiva que a Inteligência pode ter em cada uma delas.
A Inteligência pode apoiar a equipe de planejamento na identificação dos temas e atores que farão parte do diagnóstico externo. Após essa identificação, caberá à Inteligência o monitoramento do am- biente externo.
Se a elaboração do planejamento estra- tégico for apoiada por estudos de futuro com a utilização de cenários prospectivos, a unidade de Inteligência institucional ou organizacional será a mais apta para tal.
No que concerne avaliações periódicas sobre o alcance das metas estipuladas, caberá à
Inteligência, por meio de análises de conjuntura e estimativas,
responder se e por que tais metas serão ou não alcançadas
O fruto de todo este processo será o es- tabelecimento de objetivos de longo pra- zo e seu desmembramento natural em objetivos de médio e curto prazo. Tais objetivos devem ser traduzidos em me- tas e indicadores para seu eficaz acom- panhamento e controle. Nesse momen- to, a expertise da Inteligência em coleta garantirá um valioso trabalho de pesqui- sa sobre dados de referência, base para a formulação dos respectivos indicadores.
No que concerne às avaliações periódi- cas sobre o alcance das metas estipu- ladas, caberá à Inteligência, por meio de análises de conjuntura e estimativas,
responder se e por que tais metas serão ou não alcançadas, dando tempo à alta administração de agir oportunamente para potencializar sucessos e reverter ou mitigar dificuldades.
As revisões periódicas do plano estra- tégico são realizadas com base no mo- nitoramento do cenário de referência (ou normativo). A Inteligência auxiliará a equipe de gestão nesta tarefa, colabo- rando na atualização das estratégias da organização.
Comparando os fundamentos doutriná- rios da Inteligência e da GE, fica evidente a proximidade e a sinergia existente entre ambas. Uma orienta o trabalho da outra. Assim, a Inteligência pode ofertar rele- vantes contribuições a uma gestão mo- derna. É o binômio Inteligência-Gestão Estratégica.
6 O binômio Inteligência – Gestão Estratégica e a Gestão Pública
Se inicialmente os conceitos abordados acima permearam com exclusividade a iniciativa privada, cujo foco principal está na potencialização do lucro, a partir de agora passa a ser imperioso que a gestão pública incorpore e adapte esses con- ceitos e técnicas gerenciais modernos na formulação e condução das políticas públicas.
O serviço público não está afeto tão so- mente à viabilização e execução de obras públicas, mas também à prestação de serviços, desde o provimento de saúde e educação de qualidade, passando por um eficaz sistema de segurança pública,
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Fernando do Carmo Fernandes
até os serviços de cunho administrativo (licenças, alvarás, isenções de impostos, concessões, licitações, certidões etc.).
O aumento da população, o dinamismo econômico, o surgimento de uma nova classe média e os avanços tecnológicos impõem à administração pública a mo- dernização de seus processos de gestão para atender a uma sociedade cada vez mais ciente e exigente no que tange a seus direitos. Nunca é demais lembrar que o emprego correto e a boa execução dos serviços públicos propiciam a efeti- vação da cidadania.
O Estado, representado pelas três es- feras da administração pública (federal, estadual e municipal), ao adotar o mo- delo de GE, deverá pautar sua política (1) por uma visão de longo prazo, (2) no estabelecimento de ações integradas, bem como (3) na mensuração e avaliação de suas realizações, por meio de metas e indicadores. Só assim poderá responder de forma efetiva às legítimas demandas sociais.
Uma gestão pública eficaz e eficiente passa, sem dúvida, pela adoção dos con- ceitos da GE e, como visto acima, com a utilização da Inteligência, subsidiando-lhe as ações de modo a proporcionar os me- lhores serviços à sociedade.
Algumas iniciativas nesse sentido já acontecem. Como exemplo, podemos citar:
- a criação, em 2009, de uma unidade de Inteligência estratégica no Minis- tério Público de Goiás. Seu trabalho
consiste em produzir inteligência para
assessoramento ao Procurador Geral de Justiça (PGJ), bem como propor
atualizações no Planejamento Estraté- gico do Ministério Público, por meio de constantes avaliações da conjun-
tura e monitoramento sistemático da evolução dos cenários prospectivos.
- o Núcleo de Inteligência e Prospectiva Estratégicas (NIPE), criado em 2010, no âmbito da Secretaria de Planeja- mento do Estado de Goiás. Esta uni- dade de Inteligência teve como seu primeiro trabalho a formulação do Plano Goiás 2030 – plano estratégico
para o estado com aquele horizonte temporal. Suas tarefas subsequen-
tes são propor atualizações do Plano Goiás 2030, por meio de avaliações da conjuntura e monitoramento da
evolução dos cenários prospectivos.
- o Sistema de Inteligência Estratégica Institucional (SIMPT), no Ministério Público do Trabalho (MPT), implan- tado em julho de 2011. Estruturado em uma unidade central e 24 unida- des regionais, o SIMPT desenvolve atividades de Inteligência e de Con- trainteligência, objetivando o assesso- ramento do MPT no alcance de seus objetivos estratégicos e institucionais. Esse sistema busca a obtenção, orga- nização, análise, produção e dissemi-
nação de informações e conhecimen- tos relativos a fatos e situações, de
imediata ou potencial influência sobre o processo decisório, as ações, os planos, a salvaguarda e a segurança
da instituição.
Estes projetos denotam como alguns segmentos do setor público já vem ado- tando a Inteligência como parte de suas políticas de modernização da gestão,
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Inteligência e Gestão Estratégica: uma relação sinérgica
objetivando buscar maior efetividade em sua administração.
7 Conclusão
Ao examinarmos em linhas gerais a atu- ação da Inteligência em âmbito nacional, é fácil perceber que até hoje, salvo raras exceções, sempre que se fala da ativi- dade, a associação que se faz é com as ações de segurança – do Estado e pú- blica – e de repressão a ilícitos (fraudes, tráfico, contrabando, crimes ambientais etc.). Ou seja, ainda se olha para a Inte- ligência com o olhar da repressão e re- ação – um olhar míope, que raramente extrapola seu nível de utilização opera- cional, contrariamente à sua real nature- za: analítica, antecipativa e estratégica.
É tarefa da atividade de Inteligência dar o respaldo informacional necessário para que decisores e gestores da ad- ministração pública ou privada possam implementar ações que respondam aos anseios da sociedade, como cidadãos ou clientes.
De todas os tipos da Inteligência se espera este mesmo entendimento. Da Inteligência de Estado, a produção de conhecimentos, para assessoramento na formulação de adequadas políticas, em todo o seu campo de atuação, com foco nas mudanças globais; da Inteli- gência militar e de segurança pública, o apoio qualitativo na implantação efetiva da política de segurança, em todo seu espectro; da Inteligência competitiva ou empresarial, a orientação adequada para a obtenção de vantagens competitivas às empresas nacionais; e da Inteligência
aplicada à gestão pública, um efetivo su- porte de informações acionáveis em sub- sídio à formulação e implementação de políticas públicas eficazes, que assegu- rem melhores resultados nos indicadores sociais.
É preciso entender que a atividade de Inteligência não existe por si. Ela deve estar a serviço do pensamento estratégi- co dos formuladores de política de todos os segmentos componentes do Estado.
No entanto, é importante também que estes mesmos formuladores de política conheçam e entendam a relevância de se contar com esse tipo de assessora- mento, conferindo à atividade e aos seus profissionais o devido reconhecimento e apoio.
Desta forma, decisores, gestores e ope- radores de Inteligência de alto nível po- derão promover a recuperação da verda- deira vocação da Inteligência: produção de conhecimentos acionáveis, de forma alinhada aos objetivos estratégicos e com atuação sinérgica à gestão estratégica.
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Fernando do Carmo Fernandes
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ACEPÇÕES E CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA DE ESTADO
João Manoel Roratto*
Resumo
Aproposiçãodesteestudoédiscutirasváriasacepçõesdeinteligência,comseus diversos sentidoseinterpretações,emespecial,aInteligênciadeEstado.Esta,comoum conceito dinâmicoecomplexo,acompanhaapermanentetransformaçãodosEstadosmodernose, na suaessência,visaconheceropensamento,oagirdooutro,ojogodosinteressesentre os Estados,bemcomoasameaçasaoEstado Democrático.
1 Introdução
Apalavra inteligência apresenta sen- tidos e entendimentos de acordo
com o campo do conhecimento em que se insere, e está relacionada a diferentes tipos de saberes formadores do conheci- mento humano. Tem-se o entendimento de inteligência ligada ao campo educa- cional como a faculdade de aprender, apreender ou compreender. A crença que ela poderia ser medida pelo quo- ciente de inteligência, por exemplo, era tão solidamente considerada em contex- tos escolares e profissionais, que apenas recentemente os avanços da neuropsico- logia vieram provar que esse teste avalia, e de forma precária, apenas a capacidade lógico-matemática.
Além de considerações sobre inteligên- cia na psicologia, novas conceituações de inteligência surgem em decorrência
do universo profissional onde se inscre- ve determinada atividade. Tem-se assim, inteligência política, a Inteligência Com- petitiva, Inteligência de Estado com suas diferentes acepções e segmentos repre- sentativos.
2 Inteligência na Psicologia
A inteligência humana é considerada em toda a sua complexidade por teóri- cos como David Goleman – inteligência emocional – e Howard Gardner – inte- ligência múltipla. Goleman (1995) en- tende que a faculdade emocional guia nossas decisões a cada momento, tra- balhando de mãos dadas com a mente racional, capacitando ou incapacitando o próprio pensamento. “Temos dois cérebros, duas mentes – e dois tipos de inteligência: racional e emocional.
* Mestre em Educação pela Universidade Católica de Brasília, instrutor de Inteligência da Esint/Abin
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João Manoel Roratto
Nosso desempenho na vida é determina- do pelas duas – não é apenas o QI, mas a inteligência emocional é o que conta”, diz Goleman.
Boff (2003), interpretando Goleman, diz que “no fundamento de tudo está a inteligência emocional. Afeto, emoção – numa palavra, paixão – é um sentir profundo. É entrar em comunhão, sem distância, com tudo o que nos cerca. Pela paixão captamos o valor das coisas. E o valor é o caráter precioso dos seres, aquilo que os torna dignos de serem e os faz apetecíveis. Só quando nos apaixona- mos vivemos valores. E é por valores que nos movemos e somos”.
Ainda no campo da psicologia, Gardner (1999) afirma que todos os seres hu- manos têm inteligências modulares. São modulares porque cada inteligência é autônoma ou independente das outras. A teoria das inteligências múltiplas é um modelo alternativo à concepção tradicio- nal e unitária da inteligência. Propõe um conjunto de potenciais biopsicológicos comuns a todos os seres humanos, que os permitem resolver problemas ou criar produtos valiosos em seu meio cultural. Os critérios provêm das ciências bioló- gicas, da análise lógica, da investigação psicológica e da psicologia de desenvol- vimento.
Segundo essas categorias, a inteligência linguística se relaciona com as habilida- des para a linguagem falada e escrita; a inteligência lógico-matemática envol- ve capacidades para a análise lógica de problemas e o cálculo numérico; a inteli- gência musical compreende talentos para
executar, compor e apreciar a linguagem musical; a inteligência cinético-corporal se relaciona com destrezas para usar seu próprio corpo ou partes do mesmo na resolução de problemas ou a criação de produtos. Por inteligência espacial se entende as atitudes para reconhecer e manipular padrões espaciais amplos ou específicos. A inteligência intrapessoal é a capacidade de compreensão dos pró- prios motivos e sentimentos. A inteligên- cia interpessoal se refere a habilidades para compreender a personalidade de outros seres humanos e trabalhar efeti- vamente com eles. E a inteligência na- turalista, se caracteriza por destrezas para o reconhecimento e recolocação de objetos do mundo natural.
Às oito inteligências destacadas inicial- mente por Gardner, na opinião de Baus (2003), se acrescentaram recentemente duas mais: a inteligência sexual e a inteli- gência política.
3 Inteligência política
A inteligência política, segundo Baus, tem um enfoque teórico e numero- sas implicações de valores, condutas e comportamentos. Em termos gerais, a inteligência política seria a soma de al- gumas inteligências, tanto racionais, afe- tivas e concretas que se expressam, por exemplo, na capacidade de liderança e negociação; na concepção e práxis de um modelo de pensar, sentir e atuar que “sintonize” com a realidade social e suas expectativas; na capacidade de tomar de- cisões importantes e oportunas; na com- preensão do passado e a construção de
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Acepção e conceitos de Inteligência de estado
visões de futuros possíveis; e, principal- mente, na busca de respostas (solução de problemas) que se quer em um dado contexto.
Essa nova forma de inteligência levaria os pensadores, os formuladores, os execu- tores da política, a pensar, sentir e atuar em política com previsão, com equidade, com praticidade e planejamento, num tempo e espaço determinados, com uma forte dose de humanismo e de autorida- de bem entendida e praticada.
Esses atributos e valores seriam as vari- áveis de uma inteligência política capaz de governar as crises, propor soluções adequadas que dificilmente seriam pen- sadas, e a pessoa, entidade ou governo que exercita esses predicados, passa a ser reconhecido no meio em que mani- festa essa sabedoria.
4 Inteligência Competitiva
Outra referência muito usual relacionada à inteligência é o da Inteligência Com- petitiva. Essa denominação é um modelo de negócio investigativo revelado inicial- mente na Europa e nos Estados Unidos da América por ex-agentes da Inteligên- cia desses países, nos anos 80 da déca- da passada. Empresas formadas por es- sas pessoas passaram a prestar serviços para grandes corporações americanas e europeias, interessadas em saber o que o concorrente estava planejando.
Começou-se a fazer para a iniciativa pri- vada aquilo que costumavam executar para os governos – como espionagem, por exemplo –, no momento em que as
economias capitalistas ocidentais esta- vam orientadas para ampliar a compe- tição econômica e financeira em âmbi- to global, decorrente da globalização. O nome dessa transposição do público para o privado foi Inteligência Competi- tiva, uma denominação eufêmica que se dá à espionagem industrial.
No Brasil, empresas que lidam com Inte- ligência Competitiva de forma sutil, pre- ferem se referir à atuação como de ‘con- tra-espionagem’. Essas atividades vêm crescendo no país, muitas vezes como ramificações de empresas do gênero do exterior e que já merecem a atenção dos órgãos governamentais encarregados da fiscalização dessas empresas.
5 Inteligência objetiva
Ventura (2004, p. 35), ao se apoiar em Machado (2000), faz uma transposição interessante do conceito de inteligência aplicado as estruturas de ensino e diz que é necessário aprofundar a noção de inteligência, inserindo-a num espaço maior, por representar a competência de um sistema, seja um indivíduo, uma em- presa, uma organização social, um go- verno,
[...] para administrar conhecimentos dis- poníveis, construir novos conhecimen- tos, administrar dados ou informações disponíveis, organizar-se para produzir novos dados e informações, sempre em razão de uma açãointencionaltendo em vista atingir objetivos previamente traça- dos, ou seja, visandoàrealizaçãode um projeto. Em uma palavra, a inteligência encontra-se diretamente associada à ca- pacidade de ter projetos; a partir deles, dados, informações, conhecimentos são mobilizados ou produzidos. (grifo nosso)
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João Manoel Roratto
A capacidade de ter projetos e de exe- cutá-los é o que define a importância e a estatura de uma organização, para o nosso caso específico, uma organização de inteligência. Desse modo, o que vem a ser inteligência de interesse do Esta- do pode ser compreendido por meio de uma complexa conceituação, que envol- ve conceitos de inteligência emocional, modular, inteligência política, de Inteli- gência Competitiva (que tem seu germe na Inteligência de Estado), pois a trans- versalidade desses conceitos pode in- dicar um caminho relativamente seguro sobre a essência do que é inteligência, nesse complexo e indefinido mundo da Inteligência de Estado.
Obter dados, reunir elementos consisten- tes para conhecer os fatos relacionados às ameaças e as oportunidades com profun- didade, analisá-los corretamente de modo a informar com segurança o dirigente, seja em que nível for, na tomada de decisões em benefício da sociedade e do Estado, e de forma eficaz, pressupõe que adoção das diferentes inteligências por quem par- ticipa dos diferentes níveis estruturais da organização de Inteligência.
No início de tudo está a capacidade de ter um projeto viável e a execução de- pende do preparo individual do oficial de Inteligência, de sua competência e idoneidade para levar em frente o pro- jeto. O seu aprimoramento profissional compete a Escola de Inteligência, insti- tuição de educação, que direciona suas prioridades para atender as necessidades internas de formação e aperfeiçoamen- to profissional, e também as demandas
externas provenientes de organismos go- vernamentais federais e estaduais, que entendem que o conhecimento técnico e especializado contribui para o bom de- sempenho das suas atividades, que tem no interesse público o seu fim.
Por esse motivo, as ações de ensino de- vem ser adequadas à realidade nacional e como tal, estar pautada por valores éti- cos e de cidadania quando da formação do servidor público que trabalha ou que venha a envolver profissionalmente com temas de interesse da atividade de Inte- ligência.
6 Pequenos exemplos históricos do que seria mesmo Inteligência de Estado
A evolução histórica nos fornece mode- los de aquisição de dados e informações utilizadas para atender anseios de um di- rigente para conhecer um determinado povo ou Estado, seus dirigentes, eco- nomia, sua capacidade reativa a confli- tos em situações críticas, de guerra e de paz. Já no começo das relações entre os Estados, na Europa, os tratados de di- plomacia ensinavam aos funcionários do corpo diplomático a procurar todas as informações possíveis sobre o país onde trabalhavam.
Duroselle (2000, p. 122) estudou como ocorreu a evolução das formas diplomá- ticas nos Estados modernos e seus efei- tos na política externa desses Estados e apresentou um fragmento escrito, datado de 1561, e que se mostra ainda atual nos dias de hoje, onde revela o que de importante o corpo diplomático sediado nos países estrangeiros deveria pesquisar.
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Acepção e Conceitos de Inteligência de Estado
Os pontos mais reveladores indicavam a pesquisa sobre
[...] a natureza do país, seus limites, sua fertilidade ou esterilidade, a indústria, o comércio, sua inclinação para as armas ou para as artes, sua boa ou má disposi- ção em relação ao seu príncipe. As forças terrestres ou marítimas, quais chefes co- mandam, naturais, estrangeiros, seu valor e reputação, as próprias forças de que o príncipe pode fazer uso em tempo de guerra ou por qual estrangeiro ele pode ser assistido, seja pelo interesse comum entre eles ou subvencionando-o. Qual sua disposição em relação aos países vizinhos ou outros e a destes em relação a ele. O fundamento e as ocasiões que uns e outros pode ser bem ou mal combinados, o ren- dimento e o gasto corrente deste príncipe; seu tesouro e quanto ele pode crescer por ano. Quais são os seus ministros e con- selheiros, suas qualidades pessoais, sua união ou desunião, seus objetivos e inte- resses particulares, suas oportunidades e a falta delas, se eles são de uma probidade sólida e de uma fidelidade que nenhuma corrupção possa ocorrer, se o lugar que eles ocupam no governo foi alcançado por mérito ou por favor, que parte os gran- des têm nos negócios e qual o apreço que o príncipe dispensa a eles. Finalmente, a honra e o gênio desse príncipe, sua capa- cidade, seus exercícios, inclinações, virtu- des, vícios, tanto quanto o conhecimento de todas essas particularidades, pode pro- porcionar uma grande luz a todos os que com ele tiverem negociado.
Essa categorização ampla de pesqui- sa dirigida aos diplomatas dessa época passou a ser usual e até mesmo admiti- da no concerto da diplomacia, além do que, muitos dados hoje podem ser facil- mente obtidos numa simples pesquisa na rede mundial de computadores. Porém, quando algumas dessas informações ob- tidas pela diplomacia passam a ser de domínio público (por exemplo, quando
ocorrem divulgações autorizadas por Lei ou mesmo quando há ‘vazamentos’ de documentos diplomáticos classifica- dos por grau de sigilo), causam grandes constrangimentos para os interlocutores, principalmente para os interlocutores na- cionais.
Para os governos nacionais, fica a obri- gação da justificativa do porquê que seu ministro revelou tal informação e, para quem está diretamente envolvido, o de dar explicações para a sociedade, que, mesmo sendo convincentes, podem até mesmo encerrar uma carreira política consolidada ou constranger suas aspira- ções futuras de poder.
Para a diplomacia, as informações se justificam no quadro mais abrangen- te do discurso recorrente do ‘interesse nacional’, de conhecer possibilidades e oportunidades para ambos os países, ou ameaças que possam colocar em risco os interesses de seu país, etc.
Hoje ainda persiste o mesmo tipo de regramento para o corpo diplomático, de que o diplomata informe sobre fatos ou situações do país onde exerce o seu mister, desde que não sejam dados ou informações sobre o país que estão pro- tegidos por sigilo. Ao contrário, se for surpreendido em atividades de obten- ção de informações proibidas por lei, ele pode ser considerado personanon grata e inclusive ser expulso do país.
Mas foi nesse contexto de conhecer com profundidade aspectos de outros Estados é que emergiram os serviços
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João Manoel Roratto
de Inteligência modernos. Ao estudar as origens dos sistemas nacionais de Inteligência, Cepik (2003, p. 79) per- cebeu que a Inteligência Competitiva é mais antiga do que se supõe, e que ela foi o embrião dos serviços de Inteli- gência, pois já no período moderno da história,
[...] os reis e ministros dos Estados eu- ropeus modernos, em seu processo de competição com outros governantes e no esforço de implementar sua domi- nação sobre territórios e populações cada vez mais amplos, mobilizaram re- cursos e fundaram organizações espe- cializadas na obtenção de informações. A criação de serviços secretos (mais tarde conhecidos como serviços de in- teligência) foi uma das respostas às ne- cessidades mais gerais dos governantes em termos de redução dos custos de transação associados à obtenção de in- formações.
...osurgimentodos sistemas nacionaisdeInteligência está associadoaolentoprocesso de especializaçãoe diferenciação organizacionaldas funções informacionais necessárias àsdecisõesquelevavam à sobrevivênciadeum povo,...
Com a especialização dos serviços de Inteligência, a obtenção de dados e in- formações protegidas passou a ser feito por pessoas especializadas dos serviços de Inteligência em obtê-los de forma clandestina, conforme referência feita por Godson e mencionado mais adiante. E ainda, por mais paradoxal que possa parecer ao leitor comum, dentro dessa
mesma especialização da atividade de In- teligência, os países admitem no seu ter- ritório os ‘adidos de Inteligência’, num processo de intercâmbio de informações necessárias no contexto global de grande complexidade e de ameaças crescentes, como criminalidade organizada, os deli- tos financeiros, o tráfico internacional de drogas ilícitas, de pessoas.
Percebe-se que o surgimento dos siste- mas nacionais de Inteligência está asso- ciado ao lento processo de especializa- ção e diferenciação organizacional das funções informacionais necessárias às decisões que levavam à sobrevivência de um povo, de um Reino ou de um Estado, melhores oportunidades de negócios, a ciência e a arte de fazer a guerra, aten- der aos anseios de consolidação e expan- são dos estados modernos por meio da diplomacia. Mais tarde, passou a servir também à manutenção da ordem inter- na nos Estados nacionais como pode ser visto, inclusive, no caso da evolução da atividade de Inteligência no Brasil, no en- tender de Roratto e Carnielli (2006).
7 Alguns conceitos sobre inteligência de Estado
O termo Inteligência é relacionado por pesquisadores a relações e entendimen- tos secretos que normalmente ocorrem dentro do território ou fora dele. Deri- vado da palavra inglesa ‘intelligence’ , passou a designar, dependendo do enfo- que que se queira dar, serviço de Infor- mações, serviço de Inteligência, serviço secreto, serviço de segurança. Em todos os casos, é uma instituição do Estado
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Acepção e Conceitos de Inteligência de Estado
colocada à disposição dos governantes dos países para que eles se informem an- tes de tomar decisões, na crença de que esta figura onipresente, onisciente, qua- se divina, seja capaz de conhecer com profundidade os assuntos que envolvem os interesses nacionais.
Quando um fato relevante acontece no país e que causa alguma ou muita co- moção na população, o primeiro ques- tionamento que se faz é dirigido para a atividade de Inteligência: ‘onde estava a inteligência que não previu esse aconte- cimento?’, como se a ela fosse dada toda essa qualidade capilar.
A origem do termo Inteligência está re- lacionada a uma das mais importantes funções da Secretaria de Estado na In- glaterra no reinado de Elizabeth I, qual seja o controle interno e externo de in- formações, que era chamado então de “the intelligence”. O termo, segundo Cepik (2003, p. 83),
[...] não significava apenas a provisão de informações extraordinárias sobre potên- cias inimigas (especialmente sobre a frota espanhola antes de 1587) ou conspira- dores internos (como os jesuítas e outros perseguidos com base no TreasonAct de 1351), mas incluía também um supri- mento regular de notícias internacionais e informações sobre o mundo. A maior parte dessas notícias era relativamente rotineira e não provinha de fontes secre- tas, embora isto deva ser relativizado, porque a própria distinção moderna entre domínio público e secreto não era clara naquele período.
Bobbio (1995), no Dicionário de Po- lítica, define os serviços de segurança
como órgãos do Estado encarregados de coletar informações políticas, milita- res e econômicas sobre os demais Esta- dos, particularmente sobre os Estados rivais, inimigos ou tidos potencialmente como tais. Estes serviços têm também a função de impedir a atividade de espio- nagem estrangeira onde quer que seja possível.
Em razão da amplitude e diversidade da Inteligência, não existe um consenso sobre o seu significado. Para Bruneau (2003, p. 202), a Inteligência é definida principalmente como processo de reco- lher e utilizar informações para qualquer finalidade. Uma vez que os processos são variados, diz ele, tão variados quan- tos as fontes de informações e as suas fi- nalidades, muita coisa é necessariamente deixada vaga. Por outro lado, a grande parte das discussões na comunidade de Inteligência centra-se na perícia,
[...] mais no “como fazer” em relação às fontes, métodos e análises, do que no “o que é inteligência”. Além disso, por de- sígnio ou por hábito, a comunidade de inteligência se caracteriza pela obscuri- dade (indefinição, nebulosidade) e pela ambiguidade. Tal atitude ou abordagem é provavelmente intencional: não fornecer informações. (ibid, p. 212).
Já na visão de Godson (1997), a literatu- ra pode ser usada para mostrar que, ape- sar de diferentes regimes políticos terem definido e empregado o termo Inteligên- cia, é possível propor uma definição de Inteligência que considere as diferenças. Para ele, Inteligência pode ser definida como um conhecimento, organização e
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João Manoel Roratto
atividades que resultam: (1) na coleta, análise, produção, difusão e na utiliza- ção especializada de informações relativa a outros governos, grupos políticos, par- tidos, forças militares, movimentos ou outras associações que dizem respeito a grupos ou a segurança governamental; (2) na neutralização ou na contraposição de atividades similares realizados por ou- tros grupos, movimentos ou governos; e (3) em atividades encobertas, realizadas para influir na composição e comporta- mento de grupos e governos.
Em decorrência das proposições aci- ma, e dependendo da forma e da ênfase com que a Inteligência é exercida, qua- tro diferentes maneiras de Inteligência, na opinião de Godson (1997), podem ser implementadas. Elas são a obten- ção de informes de modo clandestino (ClandestineCollections) – informações secretas valiosas obtidas através do uso de métodos tecnológicos e humanos –; a Contrainteligência (Counterintelligence) – com o propósito de identificar, neutra- lizar e estudar organizações ou os ser- viços de Inteligência de outros Estados –; a realização de análises e estimativas (AnalysisandEstimate)– através da ava- liação de informes e outros dados para assessorar os formuladores da política com um produto final adequado e que seja mais claro que apenas os dados iso- lados –; e as ações encobertas (Cover Action)– realizadas para influenciar nas condições políticas, econômicas e milita- res em outros países, na qual o papel de ator da Inteligência não irá aparecer ou não será conhecido publicamente.
8 Notas Finais
Aproposição desse estudo foi o de discu- tir as diferentes maneiras de se entender o que vem a ser inteligência, em parti- cular Inteligência de Estado. Inteligên- cia é um conceito amplo e aplicável em determinado domínio do conhecimento. Pode-se dizer que está relacionada à cultura de um país, portanto dependen- te das condições históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais e de defe- sa de cada Estado ou Nação.
Eumadasfunçõesda atividade deInteligênciaéade ser extremamente dinâmica, teragilidadedeação para preverfatosou situações deinteressedo Estado
Definir claramente o que é mesmo Inte- ligência de Estado, como diz Bruneau, é desnecessário, face ao dinamismo das relações globais e das constantes amea- ças ao Estado, que mudam em velocida- de não burocrática. Basta indicativo geral do que ela é para atender os dispositivos legais. E uma das funções da atividade de Inteligência é a de ser extremamente di- nâmica, ter agilidade de ação para prever fatos ou situações de interesse do Esta- do e agir nos efeitos quando necessário, mas com o devido controle, interno e externo, para prevenir possíveis desvios. Mas isso penso que é uma questão su- perada na Inteligência brasileira, pois ela mesma busca definições claras e efetivas sobre o controle parlamentar.
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Acepção e Conceitos de Inteligência de Estado
A atividade de Inteligência é um tipo de trabalho, na visão dos pensadores tra- zidos nessa discussão, que decorre da necessidade de conhecer bem os interlo- cutores quando se estabelecem relações de interesse ou de conflito entre as par- tes ou Estados, pois no jogo de interes- ses, os homens escondem uma parte de seu pensamento, dissimulam algumas de suas ações e, consciente ou inconscien- temente, tendem a mostrar uma imagem de si próprios geralmente melhoradas, mas depois quando esta vem à públi- co mostra a sua real condição. Assim, de um lado existem segredos pessoais, industriais e de Estado que interessa às partes preservar, e, de outro, o interesse humano em desvendar esses segredos.
Por isso, o que se diz muitas vezes é, até certo ponto, diferente da verdade, porque o que as pessoas falam no seu mundo de vida pode não ser como as coisas são re- almente no mundo das ideias. Homero, na Ilíada, já expressava esse sentimento hu- mano no diálogo entre Aquiles e Ulysses. “Tal como do Hades as portas, repulsa me causa a pessoa que na alma esconde o que pensa e outra coisa na voz manifes- ta”. (HOMERO, 2009, IX, 312-3).
A Inteligência de Estado deve voltar-se para encontrar as informações verda- deiras, e não apenas as aparentes, para bem cumprir seu papel de informar aos dirigentes e proteger os interesses do Es- tado e da sociedade. Deve, ainda, atuar no sentido de resguardar informações atinentes às suas próprias atividades e àquelas que temporária ou permanente- mente só dizem respeito aos interesses nacionais.
Nos novos tempos, os estados enfren- tam de forma ampliada outras formas de ameaças que devem ser entendidas pe- los seus dirigentes e para aos quais os serviços de Inteligência devem voltar-se no sentido da proteção da sociedade. Estas ameaças ao estado democrático podem ser encontradas, na crescente criminalidade organizada, no comércio ilegal de armas, de drogas, de seres hu- manos, no terrorismo internacional e na destruição do meio ambiente, realida- des distantes das ameaças tradicionais que forjaram o crescimento dos servi- ços de Inteligência na segunda metade do século passado.
...aatividadede Inteligência émaisdoqueuma atividade
inscritanoroldas carreiras profissionaisdeestado:é uma atividadeque apaixona.
No início dessa discussão apresentei diferentes as ideias de inteligência no sentido de contextualizar os diferentes entendimentos que se tem acerca desse termo. Outro aspecto é o de indicar tam- bém a necessidade daquele que venha a exercer sua atividade profissional na ati- vidade de Inteligência perceba a impor- tância de cada uma delas e procure se identificar com algum daqueles atributos e que tenha paixão pelo faz, pois repe- tindo Boff ‘só quando nos apaixonamos vivemos valores. E é por valores que nos movemos e somos’. E penso que a ativi- dade de Inteligência é mais do que uma atividade inscrita no rol das carreiras profissionais de estado: é uma atividade que apaixona.
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João Manoel Roratto
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AS TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E A INTELIGÊNCIA DE ESTADO
Marcel de Oliveira*
Resumo
AInteligênciadeEstadotornou-se,aolongodoséculoXX,umaatividadeburocrática regular. Contudo,aanálisedaInteligênciapelasteoriasdeRelaçõesInternacionaisnãoseguiuo mesmo ritmoehojeéincompatívelcomoníveldeinstitucionalizaçãoalcançadopelaatividade. Este artigodiscutesucintamenteospreceitosdasteoriasmaiscomumenteestudadasepropõe uma alternativadediálogoentreapráticadaInteligênciaeosesforçosteóricosquebuscam com- preendereexplicarasrelações internacionais.
1 Introdução
Nos últimos cem anos, a Inteligên- cia de Estado evoluiu para uma
atividade burocrática regular, destacada em períodos de guerra, demandada em tempos de instabilidade política interna e, em geral, pouco compreendida em tempos de paz. A Inteligência é hoje fa- tor de influência no sucesso ou fracasso das decisões governamentais e configura para alguns autores um tipo particular de poder estatal (HERMAN, 2006, p. 2).
Para as universidades e outros centros de pesquisa, entretanto, o tema só gerou interesse no século XX. Além de pouco numerosos, os estudos acadêmicos esta- vam – e ainda estão - condicionados às informações disponíveis aos pesquisado- res, conversamente ao nível de secretismo estatal. O resultado prático dessa limita- ção é perceptível nas pesquisas realizadas
ao longo da Guerra Fria, época em que os autores desenvolviam mapas mentais que explicavam as relações internacio- nais, e mesmo a ciência política, sem considerar o impacto das ações estatais secretas sobre a política interna e externa dos países.
Hoje, temos uma situação acadêmica em que são contraditórios os escassos re- gistros teóricos de atuação dos órgãos de Inteligência com reflexos nas rela- ções internacionais e a disponibilidade de anotações históricas contemporâne- as desse fenômeno. Curiosamente, as inovações tecnológicas e o emprego de métodos progressivamente sofisticados de obtenção de informações desde a I Guerra Mundial fizeram com que, entre as alcunhas dadas ao século XX, cons- tasse a de “século dos espiões”.
* Mestre e Bacharel em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB)
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Este ensaio busca cumprir dois objetivos: apresentar resumidamente ao leitor os argumentos defendidos pelas principais teorias que embasaram os estudos das re- lações internacionais no Brasil nas últimas décadas; e discutir o lugar da Inteligência na vida estatal contemporânea e a po- tencial inserção dessa atividade no modo como pensamos as relações internacionais.
A Inteligência é hoje fator de influência no sucesso ou fracasso das decisões governamentais
Mas, antes de prosseguir, consideramos necessário destacar alguns pontos que fa- cilitarão a leitura crítica do texto. Primei- ramente, as teorias aqui expostas foram, majoritariamente, estruturadas em univer- sidades estadunidenses. A opção por esse enfoque, mais que uma preferência do au- tor, resulta do maior interesse nos Estados Unidos pela “teorização”, em contrapon- to aos centros europeus, que tendem a abordar as relações internacionais a partir de uma ótica mais “historicista” e concei- tual. Naturalmente, há exceções nos dois pólos, bem como escolas independentes na Rússia, China e outros países, mas sua capacidade de difusão do conhecimento ainda é limitada.
Segundo, o termo Inteligência é aqui utilizado em referência exclusivamente à
Inteligência de Estado, entendida como a atividade burocrática regular e sigilosa de obtenção, processamento e difusão de informações de interesse estratégico pro- tegidas por indivíduos, grupos, organiza- ções ou estados estrangeiros, realizada por um órgão público vinculado à Chefia de Estado e dedicado exclusivamente a essa atividade. Essa definição busca con- densar os elementos básicos necessários ao entendimento do texto, mas de forma alguma encerra todos os modelos de Inte- ligência de Estado hoje existentes1 .
Ainda com relação a esse ponto, des- tacamos que é comum, em países com regimes autoritários e em estados que retornaram à vivência democrática após períodos ditatoriais, uma tendência à “interiorização” da atividade, ou seja, ao uso de suas estruturas para obter infor- mações referentes a nacionais e grupos atuantes dentro do país. Este ensaio não se aplica a essas instituições, ou pelo menos não à porção “interna” delas, uma vez que, apesar de eficiente, o mo- delo da “interiorização” está baseado em uma conformação autoritária de ação do aparato de segurança, em que a Inteli- gência opera mais como agente político do que como órgão de assessoramento, o que afeta sensivelmente seus métodos e resultados2 .
1 Há diversas autores que discutem uma definição para a atividade. Recomendamos: KENT, Sherman Kent (1949), Shulsky; Schmitt (2002) e Lowenthal (2003).
2 De forma resumida, primeiramente o modelo afeta os conceitos de “adversário” e “ameaça”, essenciais para a inteligência, ambos os quais passam a ser internos. Segundo, o modelo cria zonas de intersecção extensas entre o trabalho de Inteligência e aquele de órgãos executivos, como as polícias. Por último, como a Inteligência é uma atividade burocrática regular, esse movimento gera uma mudança de foco operacional que implica prejuízos, muitas vezes per- manentes, às rotinas de trabalho, à rede de acessos mantida pelo órgão e ao próprio processo decisório, que não terá uma estrutura compatível com aquela de outros estados. Recomenda- mos a consulta a Oliveira (2010).
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Por fim, utilizaremos com frequência o termo “poder”, mas exclusivamente sob a perspectiva das relações internacionais e da ciência política. Como há inúmeras definições para o vocábulo3, optamos uma vez mais por uma descrição que fa- cilite o entendimento do texto. A palavra será aqui utilizada para descrever o po- tencial de um estado para produzir efei- tos desejados. As diferentes formas de conformação e representação do poder (poder militar, poder econômico etc.) se- rão tratadas como as “capacidades” do Estado.
2 As teorias e os paradigmas das relações internacionais
Em termos gerais, é hoje aceito pelas teorias das relações internacionais que os estados são entes independentes, formalmente autônomos e com interes- ses próprios. Esses interesses são tra- duzidos em políticas externas, que en- globam o conjunto dos desejos estatais de autopreservação e de promoção na- cional. Por sua vez, as interações entre os distintos estados, por meio de suas políticas externas, conformam o sistema internacional. Como não existe um país “presidente do mundo”, considera-se que o sistema internacional não possui uma entidade gestora coercitiva supraes- tatal e que, portanto, existe uma situação de “anarquia internacional”. Passamos, a seguir, às particularidades de cada teoria ou paradigma.
2.1 A escola realista
Ainda na primeira metade do século XX, surgiu a primeira vertente teórica das relações internacionais com bases cien- tíficas. A autointitulada corrente “rea- lista” teve em Morgenthau seu principal expoente, que afirmou que “a política internacional, como toda política, con- siste em uma luta pelo poder” (MOR- GENTHAU, 2003, p. 49). Mas, se há luta pelo poder, então necessariamente o poder deverá ser um item escasso no sistema internacional, cuja obtenção por um país significará a perda por outro. Dessa lógica competitiva resultam duas conclusões: que o ápice da interação interestatal será, como o foi historica- mente, a guerra; e que um estado será tão poderoso quanto sua capacidade mi- litar para vencer guerras for superior à de seus adversários. O objetivo principal dos estados será, assim, a conversão de recursos (população, recursos minerais, geografia etc.) em capacidade militar, a qual permitirá lutar por mais poder (MORGENTHAU, 2003, p. 6-26).
A dinâmica do mundo bipolar pós-Se- gunda Guerra e a evolução na ciência política estadunidense resultaram em questionamentos ao realismo “clássico” e inspiraram uma proposta “neorrealis- ta”, cujo principal autor foi Waltz. Essa abordagem, também conhecida como realismo “defensivo”, distanciava-se do que ela definia como análise em nível
3 Utilizamos aqui uma adaptação do conceito de Freedman, Hayes e O’Neill (1992, p. 291). Para o conceito político recomendamos a obra de Bobbio, Matteucci e Pasquini (2002).
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unitário (estados) para uma análise em nível sistêmico (sistema internacional), que prioriza os efeitos da estrutura in- ternacional sobre as interações estatais. Fundamentado na premissa da inexistên- cia de uma estrutura política supranacio- nal que regula as relações internacionais e, portanto, no imperativo da chamada “anarquia internacional”, o neorrealis- mo indica que os interesses estatais são condicionados pelos diversos interesses que compõem o sistema de estados, os quais, ao tentar obter poder e garantir sua sobrevivência, contribuem coletiva- mente para a instabilidade do sistema (WALTZ,1979).
Apesar desse foco, o neorrealismo não rejeitou a centralidade do poder nas re- lações internacionais. Com efeito, essa vertente elaborou a noção de “distribui- ção de capacidades”: quais recursos de poder, principalmente militar e subsidia- riamente econômico, estão disponíveis no sistema e como sua distribuição de- sigual entre os estados determina quais serão os pólos de poder (WALTZ,1979, p. 97-126).
... a incerteza quanto às intenções e capacidades dos estados aumenta a
concentração de medo no sistema internacional...
A decadência e o eventual fim da União Soviética, na década de 1980, deixaram um vácuo explicativo nos estudos a res- peito das relações internacionais, até en- tão estruturados de acordo com a reali- dade bipolar e a situação de guerra “fria”.
Tal contexto fundamentou uma terceira vertente realista, inaugurada por Mear- sheimer e batizada realismo “ofensivo”. Essa abordagem aproveita as ideias-cha- ve do realismo clássico (luta interestatal pelo poder) e do realismo defensivo (o sistema condiciona suas partes) e adicio- na o fator medo para construir uma vi- são ao mesmo tempo pró-ativa e fatalista das relações internacionais. Para o autor, a competição por poder é um jogo de soma zero e, portanto, enquanto existi- rem outros estados, sempre haverá algu- ma medida de poder distribuída e nunca será possível definir quanto poder será “o suficiente” para a sobrevivência esta- tal (MEARSHEIMER, 2001, p. 34).
Consequentemente, a incerteza quanto às intenções e capacidades dos estados aumenta a concentração de medo no sis- tema internacional, o que alimenta o ím- peto competitivo pelo acúmulo de poder e potencializa os riscos de guerra. Nesse contexto, a garantia de uma posição mais segura no sistema internacional passaria, necessariamente, por cálculos de poder que envolveriam as capacidades ofensivas dos rivais e pela conversão de poder po- tencial (população +recursos) em poder real (capacidade militar) (MEARSHEI- MER, 2001, p. 42-52). Mesmo sem a União Soviética, as relações internacio- nais continuariam sendo pensadas, sob a ótica realista, em termos de luta pelo poder, sobrevivência e, agora, medo.
2.2 O liberal-institucionalismo
O primeiro contraponto significativo às abordagens realistas ficou a cargo das
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teorias liberal-institucionalistas, surgidas na década de 1970 como resposta ao fortalecimento do papel normativo das instituições internacionais (Organização das Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional etc), ao arrefecimento da Guerra Fria e ao aumento da influência dos temas econômicos sobre as relações internacionais. Para efeitos deste ensaio, essa vertente trouxe dois aspectos inte- ressantes aos debates referentes à cons- tituição do poder e seus impactos.
Primeiro, o liberal-institucionalismo des- tacou os temas econômicos e originou as interpretações acerca das interações interestatais em níveis diversos do estra- tégico-militar, dentre as quais ficou mais conhecido o paradigma da “interdepen- dência complexa” (KEOHANE,1977). Essa tese preconiza a existência de re- lações de dependência mútua entre os estados, decorrentes principalmente das carências e excedentes de recursos e ca- pacidades de cada país e da consequente necessidade de suprir as deficiências e dar vazão aos eventuais excessos. A ver- tente também foi a primeira a reconhecer os impactos da 3ª Revolução Industrial sobre as relações internacionais, em es- pecial no referente ao crescente fluxo de informações e pessoas e à quebra do vín- culo inexorável entre indivíduo e estado, a partir da existência de uma “sociedade civil internacional”.
Segundo, o liberal-institucionalismo, em sua crítica ao realismo e em função dos avanços cooperativos na Europa e no bloco soviético, defendeu que os esta- dos buscam interpretar as intenções dos
demais, em vez de simplesmente fazer cálculos de poder e supor um perpétuo desejo de expansão do poder nacional. Essa abordagem tornou viáveis os deba- tes a respeito do processo decisório, do papel dos chefes de Estado e outros atri- butos que influenciam o comportamento estatal e que os realistas consideravam pouco relevantes à formação e execução de políticas, dada a lógica racional e o imperativo dos cálculos de poder sobre as decisões governamentais (LEBOW, 1995, p. 26, 46-47).
2.3 Os estudos do processo decisório em política externa
Os estudos a respeito do processo deci- sório em política externa lograram atrair autores das duas vertentes teóricas ante- riores dispostos a romper as barreiras de níveis de análise (nível unitário x nível sis- têmico) propostas por Waltz e adotadas pelos estudiosos da área. Inauguraram, desse modo, o estudo da relação interde- pendente entre os fatores domésticos, a política externa e o sistema internacional.
O tratamento desse campo passou a ser feito a partir de dois níveis: o individual (o decisor) e o organizacional (a estrutu- ra decisória do Estado). No nível indivi- dual, é necessário entender que o Chefe de Estado, que é o decisor máximo no modelo estatal presente, é uma pessoa que, como qualquer um de nós, tem preferências, preconceitos, aptidões, medos, desejos e limitações. O que o torna diferente de outros indivíduos é o caráter das decisões que toma, a pressão política a que está submetido, a quanti-
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dade de assessores - e opiniões - a que está sujeito e as limitações de tempo e informação disponíveis para a tomada de decisões (HUDSON, 2007, p.38-39).
Dentre os temas acima citados, as limi- tações de tempo e informação apare- cem com maior frequência na literatura especializada. Quanto menor a dispo- nibilidade desses dois elementos para o decisor, maior a sua tendência à toma- da de decisões aquém do ideal e maior a probabilidade de uso de imagens pré-concebidas (preconceitos) que re- tratam situações anacrônicas ou mesmo equivocadas. Somam-se a isso outros elementos comuns à psicologia humana, como a resistência a informações que contradizem as imagens já construídas, a tendência ao “apego” à decisão tomada, ainda que comprovadamente errada, e a dificuldade para processar informações e ordenar preferências e consequências em momentos de crise (HUDSON, 2007, p 39-53; JERVIS,1999, p. 310-316).
O decisor - sua psicologia e lógica cog- nitiva - não responde, todavia, a todos os aspectos envolvidos no processo de- cisório. É razoável supor que suas pre- ferências não derivam, necessariamente, de um processo neutro e intimista de análise de informações, mas que elas também podem ser moldadas por fato- res externos, como as preferências de outros atores do processo decisório ou mesmo a simples seleção dos dados que lhe serão apresentados para a tomada de decisões. Essas constatações embasaram o desenvolvimento das abordagens orga-
nizacionais do processo decisório, cujos principais expoentes são Allison e Zeli- kow (1999).
O modelo de “política organizacional” dos dois autores identifica o líder de cada organização partícipe do processo decisório como um ator, com experiência e posições próprias – inclusive diferen- tes perspectivas do interesse nacional –, competindo por proeminência política. O comportamento governamental pode assim ser interpretado como resultado de um elaborado processo negociador entre pares com distintos interesses, his- tóricos pessoais e profissionais e níveis de relevância institucional para o tema em análise. Consequentemente, cada assunto trará ao processo decisório os líderes organizacionais que têm o tema entre suas competências. A relevância de cada instituição variará de acordo com o assunto, sua posição relativa à questão e, até mesmo, a empatia entre o decisor e o dirigente (ALLISON; ZELIKOW, 1999, p 255-273).
Ainda com relação ao nível organizacio- nal, Milner destaca que o Estado não é um ente homogêneo, com uma escala de preferências única e capaz de calcular custos e benefícios objetivamente, mas sim, uma estrutura poliárquica em que cada instituição é afetada distintamente pelo relacionamento externo. Nesse con- texto, cada órgão defenderá interesses específicos e explorará as informações que controla ou às quais tem acesso em benefício desses interesses (MILNER, 1997, p. 9-14).
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2.4 O construtivismo
Por fim, já na década de 1980 e, prin- cipalmente, após o final da Guerra Fria, novas abordagens propuseram o ques- tionamento das bases científicas sobre as quais se alicerçavam realistas e liberais. O movimento construtivista, em suas di- versas vertentes, propôs que as relações causais entre fatores materiais (exérci- tos e economia fortes são iguais a mais poder) eram sobrepujadas pela relação constitutiva que as ideias têm sobre a própria existência de um sistema interna- cional e de suas partes. Em outras pala- vras, toda a realidade humana, o poder, os estados, o sistema internacional etc. só existem porque as pessoas os constru- íram socialmente, porque elas pensam, e acreditam, que eles existam e tenham um valor próprio.
Em função da sua capacidade de diálo- go com as teorias já apresentadas, ado- tamos aqui o trabalho de Wendt como referencial genérico do construtivismo. Seu modelo parte de dois princípios básicos: que as estruturas associativas humanas, inclusive os estados, são de- terminadas primariamente por ideias compartilhadas, em vez de forças mate- riais; e que identidades e interesses são construídos por essas ideias comparti- lhadas, em vez de dadas pela “nature- za” ou por “instinto” (WENDT, 2006, p. 1). Wendt, todavia, não rompe com o materialismo, mas, sim, advoga o pa- pel constitutivo das ideias socialmente construídas sobre a percepção individual humana do que são os fatores materiais e de como eles afetam as relações interna- cionais. Em outras palavras, as pessoas
não entendem os soldados, os tanques, os navios etc. como números, mas sim como representações da destruição ou proteção que eles significam. Nesse mo- delo, a capacidade da sociedade civil or- ganizada de difundir e consolidar ideias pode torná-la tão importante quanto os navios de guerra.
3 A Inteligência nas relações internacionais
Notícias e documentários popularizaram relatos sobre os atentados de 11 de se- tembro de 2001, o ex-espião da KGB morto após exposição a composto radio- ativo em 2006, ou os dez espiões russos presos nos Estados Unidos e deportados para a Rússia em 2010. Em todos esses casos, a atividade de Inteligência foi he- rói ou vilã.
... há poucas menções explícitas à Inteligência nas teorias das relações internacionais.
Apesar dessas histórias serem conheci- das nas relações internacionais e algumas delas terem resultado em mudanças pro- fundas no modo como os países se re- lacionam, há poucas menções explícitas à Inteligência nas teorias das Relações Internacionais. Com efeito, um entusias- ta da área rapidamente perceberá que a maior parte da literatura especializada é produto da vivência de ex-dirigentes e ex-funcionários de órgãos de Inteligên- cia que agora se dedicam à vida acadê- mica. Como então podemos promover um diálogo entre as teorias das Relações Internacionais e a Inteligência? Para res- ponder à pergunta, voltemos um mo-
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mento ao conceito de Inteligência e aos objetivos que os estados buscam atingir quando decidem formar organismos es- pecializados nessa atividade.
... a Inteligência na verdade representa três coisas: um tipo de informação, um tipo de atividade e um tipo de organização (KENT, 1949).
Como definiu Kent, ainda em 1949, a Inteligência na verdade representa três coisas: um tipo de informação, um tipo de atividade e um tipo de organização (KENT, 1949). No primeiro caso, Inte- ligência refere-se a informações de inte- resse estratégico para um país – e prote- gidas por outro –, obtidas, analisadas e disseminadas por uma estrutura gover- namental especializada, para subsidiar o processo decisório com o intuito de compreender ameaças externas presen- tes ou potenciais.
Como atividade, a Inteligência compre- ende a obtenção e análise de dados de interesse estratégico, bem como a ado- ção de medidas de proteção às informa- ções consideradas sigilosas pelo Estado (Contrainteligência)4. Por fim, o termo Inteligência é também usado para des-
crever as organizações que conduzem as atividades supracitadas. Por produzirem informações de interesse estratégico, esses órgãos empregam elevado grau de sigilo a fim de proteger os métodos utilizados para obtenção e análise dessas informações. Essa última característica fa- vorece, inclusive, a incorporação por algu- mas agências de Inteligência de atividades voltadas não para a obtenção ou proteção de dados privilegiados, mas sim para a atu- ação pró-ativa5 na consecução de objetivos de política externa (KENT, 1949, p. 2-3).
Essas três dimensões da Inteligência dei- xam claro que o que torna esse trabalho único e, portanto, digno de uma orga- nização exclusivamente dedicada a ele é a busca por informações de interesse estratégico. Mas, dentre essas informa- ções, a maior parte provavelmente pode- rá ser obtida via meios de comunicação ou órgãos executivos, como as Forças Armadas e a diplomacia. O alvo da Inte- ligência será, portanto, aqueles dados e conhecimentos que não podem ser ob- tidos – ou que não é conveniente obter – por meios tradicionais. Em outras pala- vras, quando um governo cria um órgão de Inteligência, ele o faz para satisfazer suas necessidades de informações que
4 Utilizamos aqui o termo “Contrainteligência” na sua acepção genérica, refletida na organização da maior parte dos serviços de inteligência da América do Sul, a qual inclui a disciplina “Contraespionagem”. Reconhecemos, porém a distinção feita por alguns autores, que consi- deram a Contraespionagem uma atividade interna, destinada ao combate à espionagem, e a Contrainteligência uma atividade externa, voltada para a tentativa de mapear os comportamen- tos das Inteligências adversas e, quando possível, afetar suas capacidades.
5 Englobadas sob os termos “ações/operações encobertas/clandestinas” (covert/clandestine actions/operations),essas ações tratam desde o fornecimento de apoio material a governos ou grupos simpáticos, como o apoio britânico à resistência francesa durante a 2ª Guerra Mundial, até a atuação objetivando a derrubada de um governo rival, como a tentativa de invasão à Baía dos Porcos, e consequente retirada da administração socialista de Fidel Castro, planejada pela CIA, em 1961. Sugere-se ainda a leitura de: Woodward (2004), que narra os eventos que motivaram a Guerra do Iraque, em 2003, e oferece uma visão privilegiada da atuação regular e clandestina da Central Intelligence Agency (CIA) no período.
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são estratégicas para o processo deci- sório, mas que estão sob a proteção de outro estado, ou cuja procura ostensiva poderia gerar constrangimentos. Natu- ralmente, se há uma tentativa de prote- ção ou se há a probabilidade de gerar constrangimentos, as ações de aquisição e manuseio dessas informações precisa- rão ser de caráter sigiloso.
Ao trabalharmos as teorias das relações internacionais, vimos que são cinco os pontos-chave lançados pelos estudos na área: o poder, os interesses, as institui- ções, o processo decisório e as ideias. Para entendermos de forma mais direta a relação desses elementos com a Inteli- gência, podemos nos perguntar: Haveria Inteligência se não houvesse disputa por poder? Haveria Inteligência se os inte- resses estatais fossem claros e aceitáveis para todos os participantes do sistema internacional? Haveria Inteligência se o processo decisório estatal não deman- dasse informações diferenciadas sobre adversários? Enfim, haveria Inteligência se a atividade não fosse capaz de influen- ciar o pensamento de seus “clientes”?
Os pontos de interesse contidos em cada pergunta acima não são necessariamente – ou seriam exclusivamente – satisfeitos pela Inteligência. Na verdade, o que cada resposta faz é nos ajudar a condensar um argumento que nos permite interligar as teorias das Relações Internacionais e o estudo acadêmico da Inteligência, qual seja: a Inteligência será útil e necessá- ria aos estados se for capaz de auxiliar
o processo decisório em política exter- na a ser mais racional e preciso e menos focado em intuição e preconceitos. Em suma, o objetivo da Inteligência é reduzir incertezas e potencializar capacidades.
Dois exemplos nos ajudam a compreen- der na prática essa questão. Em 1961, os Estados Unidos buscavam uma solu- ção para a presença de um enclave so- cialista na América Central, em Cuba. O presidente à época, John F. Kennedy, autorizou a realização de uma operação da Agência Central de Inteligência es- tadunidense (CIA) em apoio a exilados cubanos, com o intuito de invadir a ilha e retirar Fidel Castro do poder. A ação, conhecida como a invasão da Baía dos Porcos, fracassou e constitui ainda hoje um dos episódios mais emblemáticos de falha da Inteligência6 .
Essa falha ocorreu por dois motivos. Pri- meiro, o presidente Kennedy, e sua equi- pe de assessores de segurança nacional, optou por redefinir diversos pontos do plano de ataque definido pelos planeja- dores da CIA. Segundo, durante os pre- parativos para a operação, a CIA forne- ceu ao processo decisório informações que sobrevalorizavam a capacidade dos exilados cubanos, subdimensionavam o potencial de reação do regime de Fi- del Castro e previam um apoio popular à invasão que não ocorreu. Em suma, a Inteligência fornecida nesse período não auxiliou o processo decisório, tendo efe- tivamente fornecido informações impre- cisas e adotado um compromisso execu-
6 A respeito do período Kennedy e da invasão da Baía dos Porcos. Recomendamos a leitura de Kornbluh (1998), há extensa literatura disponível.
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