Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa
ANEXO A
Cenário mundial do carvão mineral:
projeção da demanda mundial de energia por fonte geradora

Cenário mundial do carvão mineral: reservas/produção/consumo 2004
255 247
258

Europa
América do Norte
Reservas 909 Gt
Produção 5,5 Gt/ano
Consumo 4,8 Gt/ano
20
América do Sul
50
África
0,4 Ásia Oriente Médio
79
Oceania
Fonte: BP Statistical Review of World Energy - Jun/05
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Uirá de Melo
ANEXO B
Cenários – temperatura e mudanças


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Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa
ANEXO B (continuação)
Cenário mundial dos efeitos do aumento da temperatura e necessidades de adaptação: projeção

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Uirá de Melo

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Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa
ANEXO C
Cenários: Efeitos da elevação da temperatura nas áreas propícias ao cultivo da soja no estado do Mato Grosso

Cultura: SOJA Retenção Solo:50 Ciclo: 125
Área Apta: 893243 KM2

Cultura: SOJA Retenção Solo:50 Ciclo: 125
Área Apta: 326666 KM2
Cultura: SOJA Retenção Solo:50 Ciclo: 125

Área Apta: 847560 KM2 Cultura: SOJA
Retenção Solo:50 Ciclo: 125
Área Apta: 326666 KM2
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A ATIVIDADE OPERACIONAL EM BENEFÍCIO D A SEGURANÇA PÚBLICA: o combate ao crime or ganizado
Cristina Célia Fonseca Rodrigues
Resumo
Aglobalizaçãofavoreceuaexpansãogeográficadoscrimestransnacionaisqueutilizamas faci- lidadestecnológicasparaencobrirsuasatividadesilícitas.Otripéintegradopor narcotraficantes, terroristasecontrabandistasatuaemconjuntooudeformacomplementarconstituindo uma graveameaçaàsociedadeeaosEstadosnacionais.Nessecontexto,asoperaçõesde Inteligên- ciagovernamentalepolicial,aliadasaointercâmbiodedadoseinformaçõesentreServiços de InteligênciasãoinstrumentoslegaisàdisposiçãodoEstado,nabuscadodadosigilosoe prote- gido.NoBrasil, aAbinéresponsávelpelainterface comosórgãosinternos eos Serviços estrangeiros, etempormissãofomentaraintegração dacomunidadedeInteligência. Para cumprirestamissão,aAbindeveatuarcomoainstituiçãogovernamentalquereúne,analisa e processadadosoriundosdediversasfontescomoobjetivodeproduzirconhecimentos estraté-
gicosparaoassessoramentodasautoridades decisórias.
Intr odução
Nas últimas décadas, o aumento dos índices de criminalidade e a atuação
de organizações criminosas transnacionais
colocaram o tema Segurança Pública en- tre as principais preocupações da socieda- de e do Estado brasileiros. A delinqüência e a violência criminal afetam, em maior ou menor grau, toda a população, provocan- do sensação de apreensão, medo e des- crenças nas instituições estatais responsá- veis pela manutenção da Paz Social.
O Projeto Segurança Pública para o Bra- sil da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) aponta como principal causa do aumento da criminalidade o trá-
fico de drogas e de armas. A articulação entre estes dois ilícitos potencializa e
diversifica as atividades criminosas. Ho- micídios dolosos, roubos, furtos, seqües- tros e latrocínios estão, freqüentemente,
associados ao consumo e venda de dro- gas e à utilização de armas ilegais.
Mundialmente, o tripé integrado por narcotraficantes, terroristas e contrabandis- tas de armas e de seres humanos atua em conjunto ou de forma complementar, cons- tituindo uma grave ameaça à sociedade e aos Estados nacionais. A globalização fa- voreceu a expansão geográfica dos crimes transnacionais que utilizam as facilidades comerciais, as comunicações e os múlti-
plos meios de transportes para encobrir suas atividades ilícitas.
Em razão da complexidade, da amplitude e do poderio das redes criminosas transnacionais, a solução para a
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Cristina Célia Fonseca Rodrigues
criminalidade depende de decisões polí- tico-econômico-sociais e, concomi- tantemente, de ações preventivas e repres- sivas de órgãos estatais. A cooperação entre os países torna-se imperativa e determinante para o enfrentamento do crime organizado.
Nesse contexto, as operações de Inteli- gência governamental e policial, aliadas ao intercâmbio de dados e informações entre Serviços de Inteligência, são instru- mentos legais à disposição do Estado, na busca do dado sigiloso e protegido.
AAgência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), deve assumir a mis- são de centralizar, processar e distribuir dados e informações estratégicos para
municiar os órgãos policiais (federais, es- tatais e municipais) nas ações de comba- te ao crime organizado. Além disso, a Abin é responsável por manter contato com os Serviços de Inteligência parcei- ros, no sentido de favorecer a troca de informações e a cooperação multilateral.
1 Organizações criminosas
Aciência criminológica aponta como prin- cipais características de uma organização criminosa: hierarquia estrutural, planeja- mento empresarial, claro objetivo de lu- cros, uso de meios tecnológicos avança- dos, recrutamento de pessoas, divisão funcional de atividades, conexão estrutu- ral ou funcional com o poder público e/ ou com o poder político, oferta de pres-
tações sociais, divisão territorial das ati-
vidades, alto poder de intimidação, alta capacitação para a fraude, conexão lo- cal, regional, nacional ou internacional com outras organizações e capacidade para ameaçar interesses e instituições nacionais.
Detentoras de grande poderio financeiro, as organizações criminosas recrutam, com facilidade, elementos para compor e re- novar seus quadros, e passam a contar com indivíduos motivados financeiramen- te, bem treinados e munidos de armamen- to, muitas vezes superior aos das forças policiais. Tais fatores, aliados à ilegalida-
de inerente as atividades das organizações criminosas, tornam desigual o confronto com as forças policiais.
2 Globalização do crime or ganizado
Nas últimas décadas do século XX, a globalização permitiu ao crime organiza- do transnacional expandir-se geografica- mente e operar em qualquer continente ou Nação. Inovações tecnológicas facili- taram o fluxo das telecomunicações e do tráfego comercial aéreo, repercutindo no crescimento do comércio internacional.
Uma nova forma de fazer negócios sur- giu, possibilitando a movimentação de grandes volumes de dinheiro e a circula- ção de produtos e pessoas entre países e blocos econômicos. As organizações cri- minosas valeram-se de tais facilidades para encobrir suas atividades ilícitas e dificul- tar o controle por parte dos Estados.
Para Shelley1 (2001, p.1), o fim da Guerra Fria permitiu o surgimento da
1 Louise Shelley é professora da Escola de Serviço Internacional e fundadora e diretora do Centro Transnacional de Combate ao Crime e à Corrupção na Universidade Americana em Washington, D.C. Uma das principais especialistas em crime e terrorismo transnacional, ela é a autora de Policing Soviet Society e Crime and Modernization, bem como de vários artigos e
capítulos de livros que enfocam os mais variados aspectos do crime transnacional.
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A atividade operacional em benefício da Segurança Pública
globalização simultânea do crime, do ter- ror e da corrupção, “trindade obscena” que se manifesta em todo o mundo. A
atuação das redes criminosas transnacionais em conjunto com terroris- tas tornou-se viável a partir de uma corrupção endêmica, verificada em diver- sas Nações. Shelley analisa como a mes- ma globalização que atrai empresas
multinacionais legítimas permitiu que cri-
minosos e terroristas desenvolvessem re- des transnacionais, “dispersando suas ati-
vidades, seu planejamento e sua logística em vários continentes, confundindo, as- sim, os sistemas jurídicos estatais usados para combater o crime transnacional em todas as suas manifestações”.
De acordo com Shelley (2006, p.2), o crime organizado e o terrorismo sempre operaram fora de suas fronteiras, mas a novidade trazida pela globalização é a velocidade e a freqüência das interações, e a intensidade da cooperação entre as formas de crimes transnacionais.
Azevedo (2002, p. 473) concorda com Shelley, e anota que os crimes transnacionais são os maiores beneficiários do processo de globalização e que os “mesmos irão proliferar a uma velocidade altíssima, razão pela qual a Inteligência de Estado e policial torna-se essencial para o combate de organizações”.
3 Operações de Inteligência no comba- te ao crime or ganizado
3.1 Inteligência de Estado e Inteligência policial
As operações de Inteligência são técnicas especializadas aplicadas na busca do co- nhecimento privilegiado ou do dado ne- gado, com o objetivo de prevenir, detec-
tar, obstruir e neutralizar a ação de ele- mentos adversos e que atuam contra os interesses do Estado ou da sociedade.
Em Estados democráticos, como o Bra- sil, as operações de Inteligência devem ser executadas estritamente em obediên- cia aos preceitos constitucionais vigentes, salvaguardando direitos e garantias indi- viduais e em consonância com as normas estabelecidas no Direito Internacional.
Os dados e as informações reunidos pos- sibilitam identificar e compreender as ca- racterísticas, a estrutura, as formas de fi- nanciamento e o modusoperandidas or- ganizações criminosas e de seus compo- nentes. Conhecer estes elementos é es- sencial para (a) a formulação de políticas direcionadas para Segurança Pública; (b) o planejamento de ações preventivas e ofensivas; (c) o subsídio de análises prospectivas em nível estratégico; e (d) o fornecimento de provas materiais aos pro- cessos judiciais.
Gonçalves (2006) defende que:
Diante do grau de complexidade e diversificação do crime organizado, a atividade de Inteligência adquire grande importância não só para a repressão, mas, sobretudo, no que concerne à prevenção contra o desenvolvimento do crime organizado. A atividade de Inteligência é útil para o planejamento de estratégias de ação das autoridades no contexto da segurança pública. E as ações de inteligência devem reunir Inteligência governamental e policial, em escala federal e estadual.
Apesar de apresentarem características comuns, operações de Inteligência esta-
tal e policial têm finalidades diferencia- das. As operações de Inteligência de Es- tado, inseridas na fase da reunião de da-
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Cristina Célia Fonseca Rodrigues
dos2, são realizadas para responder à de-
manda da Atividade de Inteligência, que consiste na obtenção de dados e/ou in-
formações relevantes e pertinentes para compor conhecimentos estratégicos e subsidiar as autoridades com poder decisório.
...operaçãode Inteligência deEstado[...]visa a transformar informações táticasem conhecimentos estratégicosque antecipam fatos,alertampara situações esubsidiam documentos paraoassessoramento das autoridades governamentais.
Gonçalves (2006, p. 6 e 7) anota que as ações de Inteligência de Estado assumem várias funções, e cita o planejamento es- tratégico e a análise prospectiva como as principais:
Com base na coleta e no processamento de informações de caráter nacional e internacional – como rotas de tráfico, dados sobre o consumo em várias regiões do país, as novas tipologias –, pode-se fazer um mapeamento das atividades das organizações criminosas e das características dos diversos grupos que atuam em variados setores, estabelecendo- se as conexões.
Acrescente-se também [ao emprego das ações de inteligência] a análise prospectiva com o objetivo de identificar as tendências de ação do crime organizado e suas tipologias. Por meio dessas variáveis, é possível traçar linhas mestras de ação na prevenção e no combate às organizações criminosas, em escala nacional, além de criar instrumentos para cooperação com outros entes da comunidade internacional.
A necessidade de cooperação entre os órgãos estatais e a comunidade internaci- onal é considerada elemento imprescin- dível no combate ao crime transnacional. Godoy (2005, p.9) afirma que os proble- mas estratégicos, “por seu caráter sorra- teiro, [...] só podem ser contidos por meio de uma eficaz atuação dos serviços de Inteligência dos diversos países, que [...] devem trocar informações entre si”.
No Brasil, cabe à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) – criada pela Lei nº 9.883 (BRASIL, 1999) – manter con- tato com os Serviços de Inteligência estrangeiros e promover o intercâmbio de conhecimentos e a realização de trabalhos conjuntos. Paiva (2005, p. 39), reforça a idéia da necessidade de cooperação multilateral:
Vários textos, convenções e resoluções da Organização das Nações Unidas têm
conclamado a cooperação entre os
serviços de Inteligência dos países- membros daquele organismo internacional
para que se juntem nesse sentido e
cooperem trocando experiências e informações.
No âmbito interno, compete à Abin – órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) – planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de Inteligência do País. A insti- tuição, amparada por prerrogativas legais, deve receber, analisar e processar os da- dos e informações coletados e buscados pelos diversos órgãos que compõem a comunidade de Inteligência interna e ex- terna. Odestino do material informacional reunido é a produção de conhecimentos oportunos e estratégicos para o assessoramento das autoridades decisórias.
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A atividade operacional em benefício da Segurança Pública
Azevedo (2002,p.469) cita o Manual de Inteligência Policial do Departamento de Polícia Federal para definir operações de
Inteligência como:
[...] conjunto de ações de Inteligência
Policial que empregam técnicas especiais de investigação, visando a confirmar evidências, indícios e obter conhecimentos sobre a atuação criminosa dissimulada e complexa, bem como à identificação de redes e organizações que atuam no crime, de forma a proporcionar um perfeito entendimento sobre seu “ modus operandi”, ramificações, tendências e alcance de suas condutas criminosas.
No âmbito policial, as operações de Inte- ligência Policial têm o compromisso de reunir e produzir provas materialmente lícitas e processualmente legítimas para
validar ações na Justiça e “produzir co- nhecimentos a serem utilizados em ações e estratégias de polícia judiciária”, Menezes e Gomes (2006, p.41).
A distinção entre operação de Inteligên- cia de Estado e operação policial é que a primeira visa a transformar informações táticas em conhecimentos estratégicos que antecipam fatos, alertam para situa- ções e subsidiam documentos para o assessoramento das autoridades gover- namentais, enquanto a segunda, como cita Azevedo (2002, p. 470), busca a produção de provas da materialidade e autoria de crimes.
No entanto, é imprescindível a interação entre as Inteligências governamentais e as policiais, Menezes e Gomes (2006, p. 42) analisam que “é incontestável e premen- te a maior interação entre os órgãos [...] policiais e de segurança do Estado, com a mitigação da exacerbada compartimentação, com a comunicação em tempo real de possíveis ameaças ao
Estado”. Compartilhar dados e informa- ções, integrando bancos de dados, capa- citando pessoal para as ações ofensivas
são iniciativas que devem ser buscadas, sobretudo pelos órgãos que integram o Sisbin, em parceria com as agências es-
trangeiras.
3.2 Técnicas Operacionais
Para o enfrentamento de redes crimino-
sas (compostas por elementos treinados, motivados financeira ou ideologicamente
e munidos de armamento moderno e de
tecnologia avançada), o elemento operacional necessita planejar cuidadosa-
mente as ações a serem executadas. Para
tanto, necessita primeiramente de um Estudo de Situação (ES), com levantamen-
to completo dos dados e informações
existentes sobre o alvo da operação. Os aspectos levantados no ES servem de sub-
sídios para a elaboração do Plano de
Operações (OP) que deverá abordar os itens situação, missão, execução, medi-
das administrativas, coordenação e con-
trole. No detalhamento da forma de exe- cução, o elemento operacional analisa as
técnicas operacionais necessárias para a consecução da missão.
A coleta de dados em ambiente adverso exige o emprego de diferentes tipos de
técnicas operacionais, das mais simples
às mais complexas (recrutamento e infil- tração de agentes), executadas isolada-
mente ou em conjunto (emprego de uma
estória-cobertura para realizar um reco- nhecimento); no entanto, observa-se que
requisitos como planejamento detalhado,
treinamento dos agentes, meios tecnológicos e equipamentos seguros e
adequados para a missão são comuns às ações especializadas.
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 61
Cristina Célia Fonseca Rodrigues
Entre as técnicas especializadas legiti-
mamente empregadas, Azevedo (2002, p. 470) destaca a “vigilância; o recruta- mento; a interceptação e o monitoramento de comunicações telefônicas, telemáticas e em sistemas de informática; a captação e a interceptação ambiental de sinais ele-
tromagnéticos, óticos ou acústicos; e a infiltração de agente” em organizações criminosas. Além das técnicas elencadas por Azevedo, outras ações, como a ob- servação, memorização e descrição (OMD), a estória-cobertura, o reconhe-
cimento, a fotografia, a entrevista, são lar- gamente empregadas na busca do dado protegido.
Para Azevedo (2002, p. 470), monitorar as comunicações “torna-se imprescindível face aos óbices encontrados na produção
de inteligência”, pois as organizações cri- minosas são “impermeáveis à presença de estranhos”; assim, técnicas convencionais de
investigação tornam-se inócuas quando se trata de crime organizado especializado.
A Abin não possui amparo legal para rea- lizar a interceptação e o monitoramento
das comunicações telefônicas. Tal fato tem
sido apontado por especialistas na área de Inteligência de Estado como uma falha legislativa, pois cerceia o órgão central do Sisbin de empregar esta importante téc- nica operacional na busca de dados refe-
rentes, sobretudo à atuação do crime or-
ganizado e às atividades de espionagem em território nacional.
Discute-se, no âmbito do Poder Legislativo, a aprovação de legislação que garanta o direito de a Abin realizar interceptações telefônicas, especificamen- te nos casos que envolvam sabotagem, crime organizado e espionagem.
No tocante ao controle das telecomuni- cações e na produção de imagens, a Inte- ligência de Sinais (Intlg Sin) representa importante ferramenta de busca de da- dos ao produzir conhecimentos técnicos e operacionais a partir dos sinais inter- ceptados de comunicações (incluindo si- nais de voz e de dados, como telegrafia, fac-símile e comunicações por satélite) e de não-comunicações (oriundos de rada-
res e de guiamento de armamento).
Asações especializadas sãoferramentas da
Atividadede Inteligência capazesdeobter dados sigilosossobre estrutura, financiamentos, modus operandi,rotaseredes das organizações criminosas.
Para o enfrentamento do crime organiza- do, a Intlg Sin realiza o mapeamento ele- trônico sobre regiões de interesse; cria e alimenta bases de dados com informações técnicas das emissões eletromagnéticas provenientes das regiões de interesse; e fornece indícios para a utilização de ou- tros sistemas e fontes (Humanas e Imagens).
Efetivamente, a Inteligência de Sinais for- nece dados sobre pistas de pouso clan- destinas utilizadas por narcotraficantes; deslocamentos de comboios em faixa de fronteiras ou em rios; fotos de plantações de entorpecentes; e acompanhamento de freqüências de rádio e comunicações clan- destinas das redes de criminosos.
Para atingir o objetivo de buscar dados em ambientes adversos, há a exigência de aperfeiçoamento constante para os
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A atividade operacional em benefício da Segurança Pública
agentes operacionais (que devem estar atualizados com as inovações tecnológicas e treinados para empregá- las), aprimoramento e modernização de equipamentos e acompanhamento psico- lógico para os profissionais de Inteligên- cia que atuam no setor.
3.3 Considerações finais
A globalização do crime e as perspecti- vas de crescimento das organizações cri- minosas transnacionais – com ampliação de redes de atuação e constantes inova- ções no modo de ação – exigem dos Es- tados nacionais atividades coordenadas no âmbito da Segurança Pública, aliadas ao intercâmbio de dados e informações com as agências de Inteligências parceiras, de forma a reduzir o avanço e a expansão das redes criminosas internacionais.
As ações especializadas são ferramentas da Atividade de Inteligência capazes de obter dados sigilosos sobre estrutura, fi- nanciamentos, modusoperandi, rotas e redes das organizações criminosas. Para combater eficientemente as diversas modalidades de crimes transnacionais, é preciso penetrar na hierarquia com- partimentalizada das organizações crimi- nosas para conhecer seus objetivos e li- gações, e antecipar suas ações.
Os dados coletados por elementos operacionais são imprescindíveis para a elaboração de planejamento estratégico de ações de órgãos da segurança públi- ca, de análise prospectiva da evolução do crime e, também, para a produção de provas para a ação judicial.
A interceptação das comunicações e dos sinais eletromagnéticos é considerada uma
técnica operacional relevante na busca do dado protegido, em um ambiente herme- ticamente fechado e segmentado. Neste contexto, a Inteligência de Sinais repre- senta uma ferramenta importante para a aquisição de sinais e de imagens que orientam ações de combate e subsidiam conhecimentos estratégicos.
A Abin, enquanto órgão oficial de Inteli- gência do Estado Brasileiro, necessita de prerrogativas legais que lhe assegurem a possibilidade de realizar, obedecendo aos preceitos constitucionais vigentes, o monitoramento das comunicações, notadamente em casos que envolvam or- ganizações criminosas e espionagem.
O sucesso do embate entre as Nações e o crime organizado depende de cooperação, coordenação e controle, e da presença decisiva das Inteligências de Estado e poli- cial. No Brasil, a Abin é responsável pela interface com os órgãos internos e os Ser- viços estrangeiros, e tem por missão fo- mentar a integração da comunidade de In- teligência. Para cumprir esta missão, a Abin deve funcionar como a instituição gover- namental que reúne, analisa e processa dados oriundos das diversas fontes, pro- duz conhecimentos estratégicos para o assessoramento das autoridades decisórias e compartilha o conhecimento processa- do com os órgãos parceiros.
Reconhecidamente, o combate às orga- nizações criminosas transnacionais repre- senta uma tarefa árdua e perene, que deve ser executada, permanentemente, dentro de preceitos legais, mas com ações pró- ativas de Inteligência governamental e policial, e cooperação multilateral.
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 63
Cristina Célia Fonseca Rodrigues
Referências
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BRASIL. Lei Nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999. Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federa- tiva do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 8 dez. 1998. Seção 1.
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64 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.
DESCRIMINALIZAÇÃO DO DELITO DE POSSE DE ARMAS NO BRASIL
Douglas Morgan Fullin Saldanha 1
Resumo
Trata-sedeestudodestinadoainvestigarasnormasincriminadorasdaLei 10.826/2003, conhecidacomoEstatutodoDesarmamento,mormentequantoaodelitodepossede armas. Abordaasalteraçõessofridaspelalegislaçãododesarmamento,concernenteàs campanhas deregularização ededesarmamento, queocasionou adescriminalização daconduta de possedearmasdefogodeusopermitidoedeusorestrito.Outrossim,destaca-se, sobrema- neira,aabordagemdotemasoboprismadosprincípiosconstitucionaisquevisamconter o aparelhoestatalrepressor,funcionandocomoumaformadecontroledaatuaçãodo direito penal.Porfim,diantedoamploestudodareferidatemáticaedosdiplomaslegais pertinen- tes,tecem-seconsideraçõesacercadanecessidadedealteraçõesnaregulamentaçãoda cam- panhadodesarmamentodemodoaevitaroefeitoreflexodeacarretara abolitio criminis nos delitosdepossedearmasdeusopermitidoedeuso restrito.
1 Descriminalização do delito de posse de armas
1.1 Campanhas de Regularização e do Desarmamento
Entre as metas almejadas pelo Estatuto do Desarmamento, está a retirada de
circulação do maior número de armas de fogo possível, visando à redução dos ín- dices de violência e o fortalecimento do sentimento de segurança social. Neste
sentido, o item 9 da Exposição de Moti- vos nº 293, de 24 de maio de 1999, (apud FIGUEIREDO, 2006) que dá su- porte ao projeto de lei do Estatuto do De- sarmamento, já apontava para a necessi- dade de um posicionamento legal “sobre as armas que estão em poder de particu- lares, na forma do art. 2, no sentido de determinar aos proprietários das armas que as recolham às unidades das Forças Armadas, da Polícia Federal ou da Polícia Civil, garantindo-lhes a indenização de- corrente desse recolhimento”.
1 O autor é delegado de Polícia Federal lotado na Diretoria de Combate ao Crime Organizado em Brasília, pós-graduado em Direito Público e em Ciências Penais, e professor na Academia Nacional de Polícia.
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 65
Douglas Morgan Fullin Saldanha
A Lei nº 10.826 de dezembro de 2003 também previu, nos arts. 30, 31 e 32, algumas formas de se retirar armas de fogo de circulação, assim como regularizar aquelas que permaneceriam em poder da sociedade civil.
O Estatuto dispôs, em seu art. 30, sobre a possibilidade de os possuidores e pro- prietários de armas de fogo não - registradas solicitarem o registro perante o órgão competente, no prazo de 180 dias da publicação da lei, desde que apre- sentassem nota fiscal de compra ou a com- provação da origem lícita da posse.
Esse dispositivo consagrou uma espécie de anistia irrestrita, que motivou a aquisição pela população de armas não , -registradas
principalmente de origem estrangeira, para regularizá-las posteriormente. Ciente des- sa repercussão social da regulamentação legal, o legislador, via Medida Provisória no. 417, de 31 de janeiro de 2008, alte- rou a redação do art. 30. O novo texto prevê que somente as armas de fogo de
fabricação nacional, de uso permitido e não registradas, e as de procedência estrangei- ra, de uso permitido e fabricadas anterior- mente ao ano de 1997 (ano de promulga- ção da Lei nº 9.437, de 20 de fevereiro), estarão sujeitas à regularização. No entan- to, o referido dispositivo não subsistiu após
a conversão da Medida Provisória na Lei nº 11.706, de 26 de junho de 2008. Novamente foi permitida a regularização de qualquer arma de fogo de calibre per- mitido até 31 de dezembro de 2008.
O art. 31, que não teve sua redação alte- rada, prevê a possibilidade de uma arma de fogo registrada ser entregue a qual-
quer tempo à Polícia Federal, mediante recibo e indenização.
Já o art. 32 da redação original do estatuto previa a hipótese de entregar a arma de fogo não-registrada à Polícia Federal, no prazo de 180 dias após a publicação da Lei, mediante indenização, desde que pre- sumida a boa-fé do possuidor ou proprie- tário. Vale dizer que a referida boa-fé é presumida, desde que não conste no Sis- tema Nacional de Armas (SINARM) ne- nhum dado que aponte a origem ilícita da arma (apreendida, furtada, roubada etc)2 .
Devido ao sucesso da campanha de regu- larização e do desarmamento, o prazo de 180 dias fixado no estatuto, cujo início se deu em 23 de dezembro de 2003, foi es- tendido, por meio das Leis nº 10.884/ 2004, 11.118/2005 e 11.191/2005, com encerramento em 23 de outubro de 2005.
Em pesquisas da área de segurança pú-
blica, evidenciam o contínuo incremento das mortes causadas por armas de fogo,
que só sofreu decréscimo após os esfor- ços empreendidos na campanha do de- sarmamento, que se deu nos anos 2004 e 2005. Isto ficou demonstrado no “Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros 2008” (WAISELFISZ, 2008).
Os resultados da campanha do desarma- mento nos índices de violência e a pressão da sociedade, principalmente através das organizações não-governamentais (ONGs), levou o legislador a novamente conceder prazo de regularização das armas, assim como a reestabelecer a campanha do de- sarmamento, agora de forma perene.
2 “Presumir-se-á a boa-fé dos possuidores e proprietários de armas de fogo que se enquadrem na hipótese do art. 32 da Lei nº 10.826, de 2003, se não constar do SINARM qualquer registro que aponte a origem ilícita da arma”. Decreto nº 5.123 (BRASIL, 2004a, art.69).
66 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.
Descriminalização do delito de posse de armas no Brasil
Este movimento culminou com a edição da Medida Provisória nº 417/2008, pos- teriormente convertida na Lei nº 11.706
/2008, que alterou, na Lei nº 10.826, as condições para a regularização das armas não-registradas, conforme já des- tacamos, e estabeleceu uma permanente campanha do desarmamento prevendo, em seu art. 32, que “os possuidores e proprietários de arma de fogo poderão entregá-la, espontaneamente, mediante
recibo, e, presumindo-se de boa-fé, se- rão indenizados, na forma do regulamen- to, ficando extinta a punibilidade de eventual posse irregular da referida arma” (BRASIL, 2003, art. 32).
Alguns doutrinadores entendemqueo transporte daarmadefogo para
regularizaçãoouentrega ao órgãocompetente faz presumiraboa-fé do possuidoreafastaro dolo, nãoincidindoodelito de portede armas.
Por meio da Exposição de Motivos nº 9 (BRASIL. Ministério..., 2008), que acom- panhou a Medida Provisória nº 417/ 2008, o Sr. Ministro da Justiça motivou a necessidade da implementação da cam- panha do desarmamento sem definição de prazo para término, asseverando “que a partir da edição desta medida provisó- ria não mais definirá um prazo final para a entrega, mediante indenização, de ar- mas não registradas. Essa alteração viabilizará a retomada das campanhas de
entrega de armas que, por meio da conscientização e mobilização da socie- dade retirará milhares de armas de fogo das mãos dos cidadãos”.
A alteração legislativa imbuída de notável espírito humanitário acabou por acarretar, ainda que não fosse esse o objetivo, gran- de impacto nas normas incriminadoras do Estatuto do Desarmamento, e ineficácia de dispositivos penais, como o delito de pos- se de armas, que também contribuem para a diminuição da violência e proporcionam o controle e a redução do número de ar- mas em circulação.
1.2 Repercussão das campanhas de re- gularização e do desarmamento no deli- to de posse de armas
A partir de 2005, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento de que as benesses consagradas nos arts. 30 e 32, do Estatuto do Desarmamento, pro- moveram uma descriminalização tempo- rária (“abolitio criminis temporalis”) ou ainda uma vacatiolegisindireta, durante o prazo definido em lei, no que concerne aos delitos de posse de armas de uso per- mitido e de uso restrito previstos nos arts. 12 e 16 da Lei nº 10.826/2003. Referi- do entendimento está consolidado na li- nha dos julgados Habeas Corpus (HC) 83680/MS3 e Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 19466/RS4 .
Observa-se que o entendimento indica- do não contempla outras figuras típicas previstas no Estatuto do Desarmamento, mas tão somente as condutas de posse irregular de arma de fogo, verbis :
3 BRASIL. Superior..., 2007b, p.1237.
4 BRASIL. Superior..., 2007e, p.641.
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 67
Douglas Morgan Fullin Saldanha
HABEAS CORPUS. PENAL. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. FORNE- CIMENTO ILEGAL DE ARMA DE FOGO
(ART. 14 DA LEI Nº 10.826/03). ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA NÃO-OCORRÊNCIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. IMPOSSIBILIDADE. [...] Diante da literalidade dos dispositivos legais relativos ao prazo legal para regularização do registro da arma (arts. 30, 31 e 32 da Lei n.º 10.826/2003), esta Corte tem entendido que houve sim a descriminalização temporária, mas tão - somente no que diz respeito à posse de arma de fogo, a qual não se confunde com as demais figuras típicas, tais como o porte, a aquisição e o fornecimento de arma de fogo [...]5 .
A abolitiocriministemporalisnão alcan- ça o delito de porte de armas consoante posicionamento uníssono do STJ. Alguns doutrinadores entendem que o transpor- te da arma de fogo para regularização ou entrega ao órgão competente faz presu- mir a boa-fé do possuidor e afastar o dolo, não incidindo o delito de porte de armas. Contudo, o melhor entendimento aponta no sentido de se presumir a boa-fé do possuidor somente quando este esteja portando a Guia de Trânsito6, expedida pela Polícia Federal. No caso de porte da guia, o fato será atípico7 .
A descriminalização do delito de posse de armas, segundo o STJ, abrange até mesmo aquela arma que esteja com o número de série raspado, tendo em vista a autonomia entre o procedimento de re- gularização da arma e a faculdade de entregá-la à Polícia Federal, verbis :
CRIMINAL. HC. RECEPTAÇÃO. POSSE DE ARMAS DE FOGO E DE MUNIÇÕES. FLAGRANTE LAVRADO
NA VIGÊNCIA DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. POSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO DA POSSE OU DE ENTREGA DAS ARMAS. VACATIO LEGIS INDIRETA E ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA.
I. A Lei n.º 10.826/2003, ao estabelecer o prazo de 180 dias para que os possuidores e proprietários de armas de fogo sem registro regularizassem a situação ou as entregassem à Polícia Federal, criou uma situação peculiar, pois, durante esse período, a conduta de possuir arma de fogo deixou de ser considerada típica.
II. É prescindível o fato de se tratar de arma com a numeração raspada e, portanto, insuscetível de regularização, pois isto não afasta a incidência da vacatio legis indireta, se o Estatuto do Desarmamento confere ao possuidor da arma não só a possibilidade de sua regularização, mas também a de simplesmente entregá-la à Polícia Federal8 .
É oportuno lembrar que a conduta de pos- se de arma de fogo com numeração, mar- ca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, na Lei nº 10.826 (BRASIL, 2003, art. 16, IV), não se confunde com a conduta de efeti- vamente suprimir ou alterar marca, nume- ração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato (BRASIL, 2003, art. 16, I). Consoante o posicionamento da jurisprudência, somente a conduta de posse de arma com numeração raspada, suprimida ou adulterada, estaria abarcada pela abolitiocriminis temporária.
5 HC75517/MS (BRASIL. Superior..., 2007c, p.360). Nomesmosentido ver: HC90027/MG (BRASIL. Superior..., 2007d, p.267); e, AgRg no REsp 763840/RN (BRASIL. Superior..., 2007a, p.313).
6 “O proprietário de arma de fogo de uso permitido registrada , em caso de mudança de domicílio ou outra situação que implique no transporte da arma, deverá solicitar à Polícia Federal a expedição de Porte de Trânsito, nos termos estabelecidos em norma própria”. Decreto nº 5.123 (BRASIL, 2004a, art. 28).
7 HC 57818/SP (BRASIL. Superior..., 2006, p.331).
8 HC 42374/PR (BRASIL. Superior..., 2005, p.586).
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Descriminalização do delito de posse de armas no Brasil
Questão controvertida diz respeito ao conflito de leis penais no tempo, tendo em vista a possibilidade de retroatividade da aludida abolitio criminis temporária aos delitos cometidos sob a égide da Lei nº 9.437/1997. O STJ também já en- frentou essa questão e manifestou-se no sentido da retroatividade dessa descriminalização, pois “a nova lei, ao menos no que tange aos prazos dos art. 30 a 32, que a doutrina chama de abolitiocriministemporária ou de vacatio legis indireta ou até mesmo de anistia, deve retroagir, uma vez que mais bené- fica para o réu (APn nº 394/RN, Corte Especial, Rel. p/ Acórdão Min. José Delgado, j. 15/03/2006).” 9
Os entendimentos supracolacionados baseiam-se nos art. 30 e 32 do Estatuto
do Desarmamento, em sua redação ori- ginal, que previam prazos de 180 dias para regularização e entrega voluntária das
armas de fogo. Vale lembrar que tal pra- zo, cujo início deu-se em 23 de dezem- bro de 2003, teve seu termo final esten- dido, por meio das Leis n.º 10.884/2004, 11.118/2005 e 11.191/2005, até a data de 23 de outubro de 2005.
Em recente julgamento, o STF, por sua Primeira Turma, decidiu que o caráter tem- porário das normas consignadas nos arts. 30 a 32 do Estatuto do Desarmamento
não lhe conferiam a aptidão para retroagir e alcançar condutas realizadas antes de sua vigência:
EMENTA Habeas Corpus. Posse ilegal de arma de fogo de uso restrito cometida na vigência da Lei nº 9.437/1997. Lei nº
10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento). Vacatio legis especial. Atipicidade temporária. Abolitio criminis. 1. A vacatio legis especial prevista nos artigos 30 a 32 da Lei nº 10.826/2003, conquanto tenha tornado atípica a posse ilegal de arma de fogo havida no curso do prazo assinalado, não subtraiu a ilicitude penal da conduta que já era prevista no artigo 10, § 2º, da Lei nº 9.437/1997 e continuou incriminada, até com maior rigor, no artigo 16 da Lei nº 10.826/ 2003. Ausente, portanto, o pressuposto fundamental para que se tenha por caracterizada a abolitio criminis. 2. Além disso, o prazo estabelecido nos referidos dispositivos expressa, por si próprio, o caráter transitório da atipicidade por ele criada indiretamente. Trata-se de norma que, por não ter ânimo definitivo, não
tem, igualmente, força retroativa. Não pode, por isso, configurar abolitio criminis em relação aos ilícitos cometidos em data anterior. Inteligência do artigo 3º do Código Penal. 3. Habeas corpus denegado. 10
Ainterpretação do Pretório Excelso, trazen- do à baila o argumento da norma penal tem- porária11, afastou a possibilidade de retroação da lei, mas admitiu a atipicidade das condutas perpetradas (abolitio criminis temporalis) no período inicialmente previs- to nos art. 30 e 32 do estatuto. No mesmo
sentido, decidiu o STJ, no RHCnº. 22.668- RS, já sob a égide da Lei nº 11.706/2008 (INFORMATIVO STJ, 2008).
Ocorre que, com o advento da conver- são da Medida Provisória nº. 417, de 31 de janeiro de 2008, na Lei nº. 11.706/ 2008, o art. 32, que reestabelece a Cam- panha do Desarmamento, teve sua reda- ção alterada, não especificou o prazo para
9 RHC 21271/DF (BRASIL. Superior..., 2007f, p. 245). Ver também Resp 895093/RS (BRASIL. Superior..., 2007g, p. 679).
10 HC 90995/SP (BRASIL. Supremo..., 2008).
11 A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência. Código Penal (BRASIL, 1940, art. 3º).
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 69
Douglas Morgan Fullin Saldanha
término da campanha. Esta alteração foi propositada, com base no item 4 da exposição de motivos da Medida
Provisória.
Considerando a tese da abolitio criminis temporalis,adotada pelo STJ, e o detalhe
de que, atualmente, a lei não prevê qual-
quer prazo para entrega espontânea de armas de fogo à Polícia Federal, conclui-
se que ocorreu uma novatio legis in
mellius, a qual, irradiando-se pelo siste- ma jurídico, acarretará a descriminalização
dos delitos de posse de armas de uso permitido e de uso restrito.
Nadicção deFernandoCapez(2006, p.190),
os arts. 30 e 32 da Lei nº. 10.826/2003 estabeleceram um “paradisíaco período de
atipicidade”. Leia-se queanovidade legislativa
introduzida pela Lei nº 11.706/2008 criou uma infernal e irrestrita descriminalização no
tocante à posse de armas.
Pode-se dizer que o legislador “atirou no
que viu e acertou no que não viu”, visto que desejava colocar “restrições à
comercialização, à posse e ao porte de armas de fogo” (Exposição de Motivos nº 293, de 24 de maio de 1999 apud
FIGUEIREDO, 2006) e acabou por
descriminalizar o delito de posse de ar- mas de fogo por via da campanha do de-
sarmamento de prazo indeterminado.
A nova redação do art. 32 prevê que a entrega da arma de fogo deve ser feita “espontaneamente”, e induz a que alguns
operadores do direito entendam que o cidadão surpreendido na posse da arma, p. ex. exemplo durante uma diligência de
busca e apreensão, estaria incidindo no delito de posse de armas. Ainda que te- nha sido a intenção do legislador de
restringir, não tem o condão de afastar o entendimento já desenvolvido sobre a descriminalização dos delitos de posse de armas, visto que o dispositivo que prevê a entrega de armas mediante indenização não prevê prazo para fazê-lo.
Importanotarque não houve apromulgação de novaleiquedeixa de considerarodelitode posse dearmascomocrime, mas umaderogação implícita pelanormaqueinstitui a campanhapermanente de desarmamento.
Ainda que se propugne nova alteração legislativa para retificar essa equivocada política criminal, a medida provisória al- cançará as condutas perpetradas antes de sua vigência, tendo em vista o disposto no art. 5º, XL, da Constituição Federal e nos arts. 2º e 107, III, do Código Penal Brasileiro.
Note-se que temos, neste caso, uma me- dida provisória tratando de matéria pe- nal, sendo certo que isso é vedado pela Constituição da República. No entanto, alguns defendem que medida provisória pode disciplinar matéria penal, desde que beneficie o réu:
Como ensinam Celso Delmanto et al., à regra segundo a qual a medida provisória não pode ser aplicada no campo penal, ‘deve-se abrir exceção quando for favorável ao acusado’. Assim também, prosseguem: o decreto-lei ‘embora inconstitucional, pode e deve ser aplicado em matéria penal (STJ, RHC n. 3.337, j. em 20.9.1994, DJU de 31.10.1994)’ . [...] No mesmo
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Descriminalização do delito de posse de armas no Brasil
sentido, Fernando Capez ensina que, não obstante o impedimento constitucional, não se justificam as restrições materiais da Carta Magna, as quais só foram estabelecidas para impedir que medida provisória defina crimes e imponha penas. (JESUS, 2004).
Doutrinadores como Damásio Evangelista de Jesus entendem que a medida provi- sória não pode tratar de matéria penal, ainda que beneficie o acusado.
Como diz González Macchi, de acordo com o princípio de reserva legal ou da
legalidade, ‘corresponde exclusivamente à lei penal tipificar os fatos puníveis e as conseqüências jurídicas que eles geram. Nesse sentido, somente uma lei emanada do Poder Legislativo pode proibir as condutas consideradas puníveis e impor- lhes uma sanção, em virtude do princípio
constitucional que regula o sistema de separação e equilíbrio de poderes’. ‘[...] Não podemos nos esquecer de que a finalidade da restrição a que a medida provisória reine sobre Direito Penal diz respeito a não se permitir que a vontade única de uma pessoa, qual seja o Presidente da República, determine regras
sobre direitos fundamentais [...]. A admissão da analogia ‘inbonam partem’ também não serve de argumento contrário. Ocorre que nela há uma lei penal regendo matéria similar, ao contrário do que acontece com a medida provisória,
a qual não é lei.’ (JESUS, 2004).
Assim, confirmando-se a descri-
minalização anunciada, pode-se vislum- brar não só a abolitiocriminis do delito
de posse de armas, mas também a de posse de munições e acessórios, tendo
em vista a analogia inbonampartem12 .
Referências
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BRASIL. Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2003. Dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, define crimes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10826.htm>. Aces-
so em: 2 mar. 2008.
12 Constituição. (BRASIL, 1988, art. 5º, XL) c/c Decreto Lei nº 4.657 (BRASIL, 1942, art. 4º).
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 71
Douglas Morgan Fullin Saldanha
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BRASIL. Lei nº 11.118 de 19 de maio e 2005a. Acrescenta parágrafos ao art. 10 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, e prorroga os prazos previstos nos arts. 30 e 32 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Disponível em: <htp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/ L11118.htm>.
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––––––. Agravo regimental no Recurso Especial nº 763840/RN, da 6ª turma, Brasília, DF, 26 de abril de 2007. Relator: Ministro Hamilton Carvalhido. DiáriodaJustiça,Brasília, DF, 25 jun. 2007a. p. 313.
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––––––. Habeas-corpus nº 90027/MG, da 5ª turma, Brasília, DF, 25 de outubro de 2007. Relatora: Ministra Laurita Vaz. DiáriodaJustiça, Brasília, DF, 19 nov. 2007d. p. 267.
––––––. Recurso Ordinário em Habeas-corpus nº 19466/RS, da 6ª turma, Brasília, DF, 18 de dezem- bro de 2006. Relator: Ministro Paulo Gallotti. DiáriodaJustiça,Brasília, DF, 26 fev. 2007e. p. 641.
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––––––. Recurso Especial nº 895093/RS, da 5ª turma, Brasília, DF, 26 de junho de 2007. Relatora: Ministra Laurita Vaz. Diário da Justiça, Brasília, DF, 6 ago. 2007g. p. 679.
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72 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.
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A SOBERANIA BRASILEIRA,
A GRÃ-BRETANHA E A QUESTÃO DO ESCRA VISMO DURANTE A GUERRA DO P ARAGUAI:
um caso de Contrainteligência 1
Miguel Alexandre de Araujo Neto 2
Resumo
EsteartigobuscademonstrarqueaGrã-Bretanhanãocessoudepressionaraselites brasileiras, apósaquebraderelaçõesdiplomáticasde1863,comvistasaadotarmedidasque pusessem umfimaosistemaescravista.Essapressãoaparentahavertomadoaformadeumaação invasiva, encobertacomopropagandapelalivre imigração,eteria sidocontidapelaliderança militar brasileiraentre1867e 1869.
Desde o início do processo político que produziu a proclamação (1822)
e o reconhecimento (1826) da Indepen- dência brasileiros, a extinção do regime de trabalho escravo no Brasil foi, para a Grã-Bretanha, uma prioridade. A diplo- macia britânica condicionou seu apoio à causa nacional à assinatura de compro- missos mediante os quais a gradual extinção da escravidão fosse assegurada (BETHELL, 1970, p. 1-61).
A primeira etapa consistiu em abolir o trá- fico transatlântico. Um tratado foi firma- do em 1826 estipulando o ano de 1830 como a data limite para o Brasil cessar o tráfico. A partir de 7 de novembro de
1831, de acordo a lei promulgada nessa data, todos os escravos trazidos para o País estariam legalmente livres (BETHELL,
1970, p. 69). As autoridades brasileiras, no entanto, não lograram adotar medidas eficazes para que a lei fosse cumprida.
O tráfico, então, robusteceu. O período posterior a 1831 assistiu a um ingresso recorde de africanos no mercado brasilei- ro. Em resposta, a Inglaterra adotou le- gislação atribuindo a si mesma poderes para reprimir militarmente o tráfico (o AberdeenAct, de 1845). Cinco anos mais tarde, com a Lei Eusébio de Queirós, o Brasil finalmente extinguiu de fato a en- trada de mão-de-obra cativa proveniente do continente africano.
As pressões inglesas, a partir de então, foram concentradas sobre o cumprimen- to dos termos do acordo de 1826, for- çando o Brasil a adotar medidas que
1 Opresente artigo foi publicado em língua inglesa pela Sociedade de Estudos Hiberno-Latino Ame- ricanos (SILAS), no periódico Irish Migration Studies in Latin America, Zurique, v. 4, n. 3, p. 115-132, jul. 2006. Disponível em: <http://irlandeses. org/0607_ 115to132. pdf>.Aceso em: jul. 2006.
2 Mestre em Estudos Latino-Americanos/ História, University College, Londres.
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Miguel Alexandre de Araujo Neto
resultassem no fim da escravidão
(GRAHAM, 1979, p. 59-127). Esta nova fase foi encerrada em 1863, com o rom-
pimento das relações diplomáticas entre os dois países, após o bloqueio naval do porto do Rio de Janeiro, em 31 de de- zembro de 1862. Tal medida extrema foi tomada pelo então Ministro Plenipoten- ciário William Christie (1816-1874), que exigiu reparações exorbitantes pelo sinis- tro de um navio inglês no litoral sul brasi- leiro, cuja carga fora roubada, e pela pri- são de marinheiros ingleses embriagados, no Rio de Janeiro.
Acomoçãopolíticade julho de1868foigraveo bastante paraprovocaror ompimento doequilíbriodavida política epartidária nacional.
As relações anglo-brasileiras foram rea-
tadas em 1865, já durante a Guerra do Paraguai (1864-1870). Acredita-se que
a partir de então a Inglaterra teria aban- donado seus propósitos de persuadir, ou forçar, o Brasil a abolir a escravidão. A visão mais comum é a de que o assunto foi deixado a cargo dos brasileiros, man- tendo-se neutra a diplomacia inglesa (CONRAD, 1972, p. 74-75).
Outros autores sustentaram a tese, grandemente disseminada em toda a
América Latina, incluindo o Brasil, de que a prioridade britânica havia passado a ser a eliminação de um perigoso exemplo de auto-suficiência econômica e política na região do Prata: o Paraguai de Francisco Solano López (1827-1870). Para isso, teria manipulado as nações da Tríplice Aliança (Argentina, Uruguai e Brasil) de modo a atingir esse objetivo e preservar
sua hegemonia comercial e estratégica na bacia do Prata (CHIAVENATO, 1979).
Pesquisadores de destaque, porém, de- monstraram de modo preciso e claro que a tese acima, segundo a qual a Inglaterra teria sido a grande instigadora e beneficiária da Guerra do Paraguai, não tem embasamento consistente. Ao con- trário do que se pensava, a Inglaterra na verdade tentou, por meio de seu embai- xador na Argentina (Thornton), impedir a eclosão do conflito, iniciado sem dúvida pelos paraguaios em dezembro de 1864 (DORATIOTO, 2002, p.85-111).
De toda forma, não se discute se a Ingla- terra tomou medidas para levar adiante seu propósito de acabar com a escravi- dão no Brasil, depois de 1863. A única menção à continuidade dessa política apa- renta ser a asserção de Richard Graham (1979, p. 67-68) indicando não ser muito conhecido
[...] o fato de que a Inglaterra continuou a fazer pressão sobre o governo de D. Pedro II, nas décadas de 1850 e 1860, até que o Brasil manifestou a firme decisão de pôr fim à escravatura. Enquanto a lei que libertava os filhos dos escravos nascidos depois de 28 de setembro de 1871 é habitualmente considerada o primeiro indício de uma campanha abolicionista, na realidade foi a conclusão da fase britânica da história [...].
De fato, a Guerra do Paraguai foi um pe- ríodo em que houve intensa pressão pelo solapamento das bases do sistema escravista, por meio do ingresso livre, espontâneo, massivo, de mão-de-obra européia. E o principal veículo da propa- ganda da liberalização da política imigratória brasileira foi o jornal The Anglo-BrazilianTimes, fundado no Rio de
Janeiro em inícios de 1865 pelo irlandês
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William Scully (1810?-1884). Esse órgão de imprensa foi, em 1868, nada menos que o pivô da maior crise político-parti- dária do Segundo Reinado (1840-1889), como será visto a seguir.
A desagregação do regime monárquico brasileiro começou em 16 de julho de 1868. Nesse dia, por intervenção do Dom Pedro II (1825-1891), o conservador Joaquim José Rodrigues Torres (1802- 1872), Visconde de Itaboraí, foi designa- do Primeiro-Ministro, em substituição ao progressistaZacarias de Góes e Vascon- celos (1815-1877), chefe doGabinete 3 deagosto, formado em 1866. Era o fim
do terceiro, e último, mandato do Con- selheiro Zacarias.
O3 de agosto detinha maioria parlamen- tar legítima, liberal e progressista. Os progressistas eram uma dissidência do Partido Conservador, de católicos radi- cais, chamados ultramontanos (NEVES; MACHADO,1999, p. 213-226; VIEIRA, 1980, p. 32-38). Suas prioridades resi- diam na extinção das prerrogativas políti- co-religiosas do Imperador, que faziam dele verdadeiro chefe do catolicismo bra- sileiro. Graças a instituições luso-brasi- leiras (o Padroado e o Beneplácito), nor- mas emanadas do Vaticano só tinham va- lidade no País com a aprovação do Mo- narca. Zacarias era um político de forma- ção religiosa conservadora, ultramontano e líder da coalizão com os liberais.
A compatibilidade entre essas correntes divergentes estava na perspectiva de in- gresso livre no Brasil de imigrantes euro- peus. Para os ultramontanos, um reba- nho ampliado poderia contrabalançar o poder religioso do Imperador, além de impedir os imigrantes protestantes de vi- rem a ser maioria em terras brasileiras
(VIEIRA, 1980, p. 245). Tanto o Papado como seus legítimos representantes no Brasil, assim, apoiariam iniciativas volta- das para a liberalização de nossa política imigratória.
A comoção política de julho de 1868 foi grave o bastante para provocar o rompi- mento do equilíbrio da vida política e par- tidária nacional. Bosi (1999, p. 222) ob- serva que a historiografia “[...] é unânime em assinalar o ano de 1868 como o gran- de divisor de águas entre a fase mais es- tável do Segundo Império e a sua longa crise que culminaria, vinte anos mais tarde, com a Abolição e a República”.
A proclamação de um Manifesto e a fun- dação do primeiro partido republicano ocorreriam apenas dois anos após 1868. Em 1873 seria fundado o Partido Repu- blicano Paulista (BELLO, 1976, p. 16-18). Nas duas décadas seguintes, vários ou- tros movimentos, entre os quais o abolicionismo e a expansão do positivismo (especialmente nas Forças Armadas), con- correram para produzir o fim da Monar- quia no Brasil. Logo, não é nenhum exa- gero afirmar que a queda do Gabinete 3 de Agosto foi o momento histórico desencadeador do processo que resulta- ria na Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.
A crise de julho de 1868 teve relação direta com a Guerra do Paraguai. A con- dução brasileira (e depois conjunta) das operações militares da Tríplice Aliança, sob as ordens do general Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), então Mar- quês de Caxias, fora duramente criticada na imprensa liberal. As notas mais áspe- ras vieram de William Scully, em seu Anglo-Brazilian Times de 7 de janeiro daquele ano.
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Os ataques levaram Caxias a pedir sua renúncia, em fevereiro de 1868. Coube então ao Imperador optar por: 1) preser- var a Chefia Suprema das forças militares brasileiras, e aliadas, em guerra, ou 2) conservar o Gabinete3deAgosto. Dom Pedro II determinou-se a manter o gene- ral e Zacarias foi afastado, em 16 de ju- lho, usando-se como pretexto a nomea- ção do conservador Francisco de Sales Torres Homem (1812-1876), do Rio
Grande do Norte, para uma vaga no Se- nado (VIEIRA, 1980, p. 248-250). Des- feito o ministério, sob clamores de in-
dignação, novas eleições comporiam nova maioria, desta vez conservadora. A der- rubadasubseqüente afastaria dos cargos públicos os servidores e as autoridades nomeados pelo governo anterior.
CasoaInglaterratenha de fatoaplicadorecursos em propaganda abolicionista, feitaporum periódico não-oficialestabelecido no Rioededicadoàpr omoção daimigraçãolivre, teria operadoumamudança de estratégiaem seu relacionamentocomo Brasil.
Batista Pereira (1975, p.36-38), Sérgio Buarque de Holanda (1972, p.7-13 e 95- 104), Brasil Gerson (1975, p.127-131), Wilma Peres Costa (1996, p. 251-254) e Francisco Doratioto (2002, p.334-339) apontam o Anglo-BrazilianTimes como o principal órgão da oposição liberal a Caxias. De acordo com o dono do jornal,
o general brasileiro estava velho demais para derrotar o Paraguai. Em alusão à Roma republicana, Caxias seria, no dizer do irlandês, um “ Cincinnatus septuagenário”. Também o acusava de prolongar a guerra “por tanto tempo quanto for permitido ao País desperdiçar recursos”. Em seu entender, as armas fa- voritas do líder militar eram “goldbags ” (evocando uma imagem de trincheiras guarnecidas por “sacos de ouro”). A len- tidão com que as operações vinham sen- do conduzidas, à época do cerco a Humaitá, aparentava ser proposital.
As acusações, graves, são de improbidade e corrupção. Todavia, esses aspectos das críticas não são enfatizados, ainda que se reconheça nelas, em seu todo, o motivo da crise desencadeadora do declínio do Segundo Reinado. Além disso, em quase todas as fontes secundárias não há men- ção às várias atividades em que o editor irlandês esteve envolvido anteriormente.
A impressão que fica da leitura dos auto- res citados acima é a de que o Anglo- Brazilian Times surgiu na cena política brasileira de 1868 como um relâmpago, em um céu azul anil. Mas William Scully, seu fundador, aparenta ter chegado ao Rio
de Janeiro em 1861, quando montou na Rua da Candelária uma escola, para leci- onar caligrafia e vender canetas caligráficas3. Obteve da Coroa (pelo De- creto nº 3.293, de 25 de julho de 1864) a concessão para operar uma casa de ba- nhos de ar quente. Depois, em 1865, no Rio de Janeiro estabelece o Anglo- BrazilianTimes, cujas bases de apoio fun- cionavam em Londres e também em Liverpool. Fechou o jornal em 1884, após vinte anos de publicação incessante, indo morrer na França (na cidade de Pau).
3 A edição de 1862 do Almanak Laemmert traz a propaganda das canetas vendidas por Scully. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/almanak/al1862/00001298.html>. Seu nome e en- dereço estão na página 478. Nos almanaques dos anos anteriores não há menções a ele. Logo,
pode-se deduzir que o futuro proprietário do Anglo-Brazilian Times chegou ao Brasil em 1861.
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É natural presumir que a vinda de Scully
para o Brasil e o estabelecimento de seu jornal, posteriormente, tenham recebido
algum apoio da Coroa Britânica. Lembro que o trabalho de Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889) à frente do CorreioMercantilfora secretamente sub- vencionado pela Legação Britânica, fato destacado por Bethell (1970, p. 313) e Gueiros Vieira (1980, p. 90). Isso permi- te supor que Scully, um liberal católico, seria uma espécie de agente encoberto, a serviço das elites liberais britânicas e de- sempenhando uma ação invasiva.
E bem-sucedida. Significativamente, Zacarias admitiu a Caxias, em carta, sub- sidiar as atividades de Scully (PINHO, 1930, p. 86-88). A Coroa era assinante do jornal e os artigos de Scully eram pu- blicados na imprensa brasileira. Isso tor- na claro que o dono do Anglo-Brazilian Timesera influente. Seu discurso e ações eram acompanhados de perto pelas elites do Império. Assinada pelo Conselheiro Saraiva (1823–1895), circular do Minis- tério dos Negócios Estrangeiros, de 8 de agosto de 1865, endereçada a 18 em- baixadores, notifica:
O editor do Anglo-Brazilian Times , periódico que se publica nesta capital, está
por mim autorizado para remeter
diretamente a V. Exa. um exemplar dele. O Governo Imperial paga esta assinatura
e deseja que V. Exa. faça transcrever nos
diários desse país os artigos de maior interesse que encontrar no referido
periódico e cuja publicação aí nos possa
ser de alguma utilidade na presente quadra. Reitero a V. Exa. as seguranças.
Caso a Inglaterra tenha de fato aplicado
recursos em propaganda abolicionista, feita por um periódico não-oficial esta-
belecido no Rio e dedicado à promoção
da imigração livre, teria operado uma
mudança de estratégia em seu relaciona- mento com o Brasil. O estilo aristocráti-
co, agressivo, de sua política externa (“gun-boat policy,” ou “política da canhoneira”) estava sendo abandonado e o imperativo da extinção do trabalho es- cravo passaria a ser implementado, na capital do Império Brasileiro, por meio da propaganda jornalística. Logo, as linhas gerais da política britânica para o Brasil não teriam sofrido alteração de fundo, após 1863, e o fim da escravidão conti- nuou a ser prioritário, com outro figuri- no. Esse, aliás, é um período de hegemonia dos liberais no Parlamento britânico, pontificado por William Gladstone (1809-1898).
Esta hipótese está embasada no próprio discurso de Scully, nas edições de seu jor- nal anteriores a 1868, e nas efetivas ini- ciativas visando a fomentar a imigração britânica no Brasil, entre 1866 e 1875. Três tentativas frustradas de promover o ingresso sustentado de irlandeses e ingle- ses no Brasil foram verificadas nesse pe- ríodo: em Brusque (Santa Catarina), em Cerro Azul (Paraná) e Cananéia, no lito- ral de São Paulo (MARSHALL, 2005).
Quanto à propaganda da liberalização da política imigratória, desde a primeira edi- ção do Anglo-BrazilianTimes, de 7 de fevereiro de 1865, essa proposta esteve presente. Sua divulgação aberta e enfáti- ca cresceu a cada número (o jornal era quinzenal). A idéia era simples: aumentar a oferta de mão-de-obra livre, na expec- tativa de tornar obsoleta a escravidão, desencadeando um processo que culmi-
nasse na abolição da escravatura. O go- verno brasileiro não acatou a idéia de liberalização, contudo, e a colonização
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Miguel Alexandre de Araujo Neto
com imigrantes britânicos, por outro lado, foi um retumbante fracasso, que espelharia a resistência e retaliação naci- onais a pressões abolicionistas de Lon- dres (ARAUJO NETO, 2006).
A partir de 16 de julho de 1868 e da dissolução do Gabinete3deagosto, a iniciativa colonizadora na qual Scully es- tava mais diretamente envolvido ficaria desprovida de apoio político, material e financeiro, desfazendo-se em aproxima- damente um ano. Esse foi o destino do assentamento de ingleses e irlandeses na Colônia Príncipe Dom Pedro, no vale do rio Itajaí-Mirim, em Santa Catarina (hoje área correspondente a Brusque).
A certeza do vínculo entre esse projeto de colonização e a propaganda de estí- mulo à livre imigração, fartamente vei- culada no Anglo-Brazilian Times e logicamente identificada com a causa abolicionista, estaria na origem do fra- casso daquela colônia. Havendo inte- resse institucional britânico no empre- endimento, os imigrantes irlandeses e ingleses corresponderiam a uma poten- cial ameaça à soberania brasileira no equacionamento do problema da escra- vidão. Em 1869, após uma catastrófica estação chuvosa, a empreitada, que não agregava apenas irlandeses de proce- dência britânica, mas também confede- rados norte-americanos, franceses, ita- lianos e outros, entraria em colapso (MARSHALL, 2005, p. 63-87; LAUTH, 1987). Feita a dispersão des- sa primeira leva de imigrantes, a área seria unificada com a colônia de Itajahy e repovoada.
Quase simultaneamente, as outras investidas visando à promoção da imi- gração britânica eram iniciadas nas pro- víncias do Paraná e de São Paulo. As colônias localizadas em Assunguy (hoje Cerro Azul, próximo a Curitiba) e em Cananéia, São Paulo, atraíram imigran- tes britânicos, principalmente em Cerro Azul, na década de 1870, mas também resultaram em fracasso (MARSHALL, 2005, p.103-187). Hoje, encontram-se pouquíssimos descendentes dos escas- sos remanescentes das levas de colonos ingleses e irlandeses que foram destina- dos a essas áreas (MARSHALL, 2005, p.191-216). A partir de meados da dé- cada de 1870 a Grã-Bretanha decidiu proibir a emigração para experimentos colonizadores no Brasil, a exemplo de medidas similares adotadas por outros países europeus, como a Prússia, em 1859 (HOLANDA, 1982).
...adefesada soberania brasileiraestava entrelaçada,
estruturalmente,com a defesadosistema escravista.
Mesmo representando uma mudança tá- tica na campanha antiescravista britânica, o discurso presente no Anglo-Brazilian Timesnão ocultava a tentativa de interfe- rência no tratamento de um problema nacional, a questão escravista. As edições anteriores a 1868 contêm textos marca- dos por explícita agressividade e contundência, evidentes desde os primei- ros meses da atividade editorial de Scully. Ele não soa como um jornalista indepen- dente, mas sim como alguém que, lastreado por uma força maior, busca
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A soberania brasileira, a Grã-Bretanha e a questão do escravismo...
operacionalizar algo similar a uma verda- deira invasão. Essa pode ter sido a per- cepção, errônea ou não, da Coroa. E de Caxias. Não se pode esquecer que o Im- perador era assinante do jornal de Scully, como foi mostrado acima.
A primeira página da edição de número 9 do Anglo-BrazilianTimes(de 8 de junho de 1865), por exemplo, traz um balanço da promoção da imigração no Brasil, acompanhado de uma apreciação das possíveis conseqüências do problema da “falta de braços”, gerado pela crise do escravismo. Após exortar os leitores bra- sileiros a não temer ou menosprezar o imigrante europeu (“não são a escória desprezada por Deus que o preconceito e a ignorância brasileiros frivolamente as- sim consideram”), Scully assevera-lhes que “[...] sua posse sobre a população escrava está rapidamente saindo de seu controle” e que “[...] suas terras [...] não têm valor algum sem trabalhadores.” A seguir, afirma que os brasileiros
[...] devem recordar que com o imigrante europeu vêm progresso, riqueza, empreendimento e idéias avançadas, e que ele tem pleno direito de requerer, como condição de seu ingresso no país, igual
consideração com os filhos da terra à qual vincularão suas fortunas.
Avaliando as políticas de ingresso de imigrantes, Scully observa que:
É verdade que o Brasil destina anualmente 600:000$ [seiscentos contos] para o encorajamento da imigração –em proveito dequem(cuibono)? Os governos, geral e provincial, e particulares, têm estabelecido “colônias”, as quais “dirigem” e cercam de regulações. Desperdiçam seu dinheiro com estas plantas exóticas que mal
vegetam sob o cuidado paternal de Diretores, Chefes de Polícia e Juízes de
Paz, ao passo que a imigração independente, que não pede subvenções, nem dispêndio com instrutores religiosos ou profanos, nem escolas agrícolas [...] e nem “diretores” assalariados; aquela que traria consigo inteligência, empre- endimento, novas idéias e maquinário agrícola avançado, essa não recebe facilidades, nem informação, nem encorajamento.
Mais adiante, Scully joga com o medo de uma rebelião escrava:
[...] Não vêem os brasileiros que toda a sua prosperidade corre perigo, dependendo apenas da retenção de uns três milhões e meio de população negra na servidão; [...] que nenhuma confiança se pode depositar no escravo sem instrução quando ele deixa de ser compelido, à força, ao trabalho? [...] que a navegação comercial pluvial e as ferrovias [...] são um fracasso, por falta de gente ao longo das linhas? [...] Não vêem [...] o perigo de um segundo Haiti pairando no futuro, no isolamento fácil oferecido por montanhas, florestas e rios não navegáveis deste país vasto e fértil, mas sem estradas?
Prosseguindo, sua análise antecipa aspec- tos do pensamento geopolítico do século XX, no âmbito latino-americano:
[...] não vêem [os brasileiros] que, com as repúblicas expansionistas e belicosas que
circundam o Brasil, cada uma das quais tendo muito a ganhar com o seu desmembramento, a integridade de sua existência [territorial] requer que o País se mantenha na dianteira em se tratando de população, riqueza, e progresso material, um resultado apenas possível com [...] imigração grande e contínua? Para chegar a esse resultado, que o governo e o povo brasileiros ofereçam boa recepção aos imigrantes estrangeiros. Que lhes seja proporcionada toda facilidade possível para se estabelecerem e que sejam poupados das restrições religiosas e irritante vigilância [...].
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Finalmente, Scully defende o modelo nor- te-americano de imigração livre:
[...] Que sejam doadas ou vendidas a preços módicos terras do governo, em tratos entre 30.000 a 500.000 braças cada, apenas para lavradores de verdade. Que uma quantidade suficiente desses tratos, de fácil acesso, seja mantida sempre supervisionada e mapeada [...]. Que todo o encorajamento seja [...] envidado no sentido de se formar no Brasil sociedades como a de Saint George, em Nova Iorque, às quais imigrantes [...] pudessem solicitar ajuda e aconselhamento; e que se tomem medidas para disseminar o conhecimento sobre o Brasil na Europa Continental e na Grã-Bretanha.[...] Com estas e medidas similares e, talvez, imigração tempo- rariamente assistida, juntamente com liberalidade do povo e governo, uma tal corrente de imigração seria induzida, firmando a prosperidade do Brasil sobre a única base sólida e segura – uma produtiva população livree inteligente [...]. 4
A argumentação, em sua totalidade, dei- xa evidente uma estratégia visando à extinção do escravismo no Brasil por meio da imigração européia em massa. Mas Scully não se limitara a isso. Logo nos primeiros números de seu jornal, anteri- ores ao de 8 de junho de 1865, ele brin- dou o público leitor com artigos bastante depreciativos sobre a vida política e cul- tural das elites brasileiras. Sua leitura fa- cilmente conduziria à dedução de que suas iniciativas relativas à imigração con- templavam também uma extensa reforma na sociedade brasileira. Nesse sentido, seu discurso aparenta ter inspiração em Jeremy Bentham (1748-1832), fundador da cor- rente filosófica utilitarista.
A prática do clientelismo (“patronage ”) seria então sarcasticamente deplorada por Scully. Segundo ele, o tempo de um mi- nistro brasileiro era quase totalmente de- votado à tarefa de encontrar empregos para amigos, parentes, apadrinhados e correligionários, ficando a labuta adminis- trativa relegada a um segundo plano. Sumarizando o editorial de 24 de maio de 1865, pode-se ler no Anglo-Brazilian Timesque “a vida de um Ministro brasi- leiro é uma vida de completa escravidão” (“[…] thelifeofaBrazilianMinisteris a lifeofdownrightslavery”). Noutras pala- vras, o trabalho escravo seria um cancro, comprometendo de baixo para cima toda a sociedade, atingindo as elites.
Em outro editorial, de 8 de abril, Scully afirma que as novas gerações de brasilei- ros seriam trucidadas por uma onda de progresso, com a chegada em massa de imigrantes europeus:
[...] é verdade que o nosso jovem brasileiro não é inculto [...]. Não obstante, todos os seus estudos não têm um propósito, sua única perspectiva de vida está direcionada para o ‘dolce far niente’ de um emprego público [...]. As classes educadas do Brasil, através da indolência e do orgulho, abandonaram, em proveito do estrangeiro, mais utilitarista, a engenharia, a mineração, os ofícios, o comércio e a manufatura, e deixam de desenvolver os recursos e riquezas de seu maravilhoso País, até que a ciência aplicada de um estrangeiro empreendedor encontre o tesouro e o empregue em seu benefício.
4 Scully (1868) elaborou um guia para o imigrante europeu, publicado duas vezes em Londres: Brazil, its provinces and chief cities: the manners and customs of the people; agriculture, commercial and other statistics, taken from the latest official documents; with a variety of useful and entertaining knowledge, both for merchant and the emigrant. (O editor da primeira publica- ção, de 1866, chamava-se Murray.)
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Ao longo desse texto a ameaça é reitera- da, sob ângulos diferentes:
[...] advertimos nossos jovens brasileiros que, se sofrerem uma degeneração e deixarem-se emascular por meio da indolência e desprezo pelo que é útil, muito em breve suportarão a mortificação de serem expulsos até mesmo de sua atual cidadela que é o serviço público por aquelas outras classes a cujos objetivos devotam tanto escárnio, tão logo as energias que proporcionam àqueles a sua riqueza sejam dirigidas para os pães e peixes do emprego público.
Para culminar, elogiando as vantagens da disciplina de Educação Física, Scully ar- gumenta que a mesma, “[...] combinada com a ciência utilitária ocidental, faz de duzentos mil europeus os árbitros de du- zentos milhões de habitantes dos climas indianos”. Os brasileiros deveriam se lem- brar também de que “[...] Waterloo foi vencida em Eton e Harrow” (Eton e Harrow são duas tradicionais escolas do Reino Unido, voltadas para a educação de rapazes, e fundadas, respectivamente, nos séculos XV e XVI).
Nos três artigos citados é possível reco- nhecer em Scully, com uma antecedência de quase três anos em relação a 1868, o verdadeiro antagonista não só de Caxias mas também da vida política e social bra- sileira e da soberania nacional no trato da questão escravista. Em seu discurso, o expansionismo britânico vem articulado sobre um eixo ideológico liberalizante e utilitarista, mas também é evidente uma incontida vocação hegemônica e colonialista (a despeito das idéias louvá- veis de mérito, educação e exames com- petitivos).
Nesse quadro, a defesa da soberania bra- sileira estava entrelaçada, estruturalmen- te, com a defesa do sistema escravista. O Brasil rejeitaria aquela forma de expansionismo, e com ela, também as ini- ciativas britânicas no campo da imigração. Com esse fim, recorreu-se à derrubada , ou seja, o expediente segundo o qual ape- nas correligionários do partido no poder obtinham cargos públicos. Uma vez empossados, frustrariam os empreendi- mentos de seus opositores, liberais ou ultramontanos.
Estariam aí as razões mais profundas do 16 de julho de 1868. A ação invasiva de William Scully, supostamente um agente britânico, teria sido neutraliza- da por Caxias, por meio do imobilismo tático das tropas à época do cerco de Humaitá. Com sucesso, suscitou da imprensa liberal a reação acrimoniosa que o levou a entregar seu cargo ao Imperador, produzindo a posterior que- da do 3deAgosto. E impondo pesada derrota à política britânica anties- cravista e ao Papado.
Ouso supor, finalmente, que a vitória e humilhação sobre interesses e diretri- zes britânicos teriam deixado entranha- da no inconsciente dos brasileiros a noção de que a prática do aparelhamen- to estatal (e do fisiologismo, por exten- são), do clientelismo e do nepotismo os torna superiores.
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Miguel Alexandre de Araujo Neto
Referências
ARAUJO NETO, Miguel Alexandre de. Great Britain, the Paraguayan war and free immigration in Brazil, 18162-1875. IrishMigrationStudiesinLatinAmerica, Zurique, v. 4, n. 3, p. 115-132, jul. 2006. Disponível em: <[http://irlandeses. org/0607_ 115to132. pdf>. Acesso em: 12 jul 2008.
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OS FUNDAMENTOS DO CONHECIMENTO DE INTELIGÊNCIA
Josemária da Silva Patrício Resumo
Estetrabalhoconsiste emapresentarosfundamentosdoConhecimentodeInteligência, ao contemplarapossibilidade,aorigemeaessênciadeste.Ofatodearazãohumanaserou não capazderepresentaradequadamentearealidadeéocernedeumareflexãofundamental para legitimaroConhecimento.Dessaforma,analisa-seainterpretaçãodasváriascorrentes filosófi- casqueinfluenciamoConhecimentodeInteligência,asquaissãoinstrumentosdeum perma- nentedebateacercadoscritériosparavalidá-lo.Oempirismo,oracionalismo,o fenomenologismo, ointuicionismo,omaterialismodialético,opragmatismo,oestruturalismo,oconstrutivismo e pós-modernismosãoalgumasdasabordagensfilosóficasdeterminantesparaaconstrução da TeoriadoConhecimento.Adiscussãoarespeitodequaisaspectosseriampreponderantes– a experiênciaouarazão,arealidadeouaconsciência,osujeitoouoobjeto,entreoutros – tambéméimportanteparadefinirqualseriaoarcabouçoteóricoapropriadopara fundamentar aproduçãodoConhecimentonaAtividadede Inteligência.
Este trabalho objetiva argumentar so- bre os fundamentos do Conhecimento
de Inteligência, os quais suscitam diver- sas indagações, sendo uma delas a absorção, pela Atividade de Inteligência, das mesmas questões da filosofia que versam sobre a possibilidade, a origem e a essência do conhecimento.
Considerando que os pensadores das questões fundamentais da filosofia se de- dicaram e se dedicam à busca da verdade do conhecimento, o que os leva a optar por diversos caminhos e inúmeras varian- tes que traduzem o interesse de cada seg- mento das ciências particulares e das cul- turas em geral, diante de tal diversidade de entendimento, passei a procurar junto a alguns pensadores - antigos, modernos e pós-modernos - que desenvolveram
estudos sobre a relação da consciência e a realidade e se a nossa mente é capaz de conhecer e representar adequadamente o mundo que nos circunda. Esses estudos envolveram filósofos como Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes, Locke, Kant, Husserl, Heidegger, Sartre, Foucault, Jacob Bazarian e Marilena Chauí.
Também foram pesquisados os fundamen- tos teóricos produzidos pelo Serviço Na- cional de Informações (SNI) para compre- ender as razões pelas quais os doutrinadores da época buscaram exata- mente esses fundamentos que até hoje são utilizados. Tendo encontrado uma apre- sentação da Teoria do Conhecimento com explicações das várias concepções que compõem esta teoria, e mais o seguinte:
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Josemária da Silva Patrício
Na Atividade de Informações, a produção do conhecimento final é feita, inicialmente, pela apreensão dos fatos através dos sentidos externos; posteriormente, aqueles sofrerão umprocesso de elaboração mental do analista. Dentro desse enfoque, a Atividade de Informações enquadra-se dentro do intelectualismo, na medida em que o informe é o relato, a observação ou o registro de um fato (logo, é empírico) e a informação é resultante da integração e processamento de todos os informes disponíveis sobre o assunto (portanto, é um processo racional). A posição do analista de informações, na produção do conhecimento, deve ser objetiva (eliminando todo o subjetivismo ou opiniões particulares e pessoais que possam ser introduzidas em suas indagações) e caracterizada por um realismo crítico, ou seja, admitindo a possibilidade da existência de um engano ou erro no julgamento da realidade dos fatos, irá questioná-los incessantemente, buscando o convencimento sobre a verdade dos mesmos. Apesquisa efetuada pelo analista, durante as atividades desenvolvidas para a produção do conhecimento, caracteriza-se pelo ceticismo metódico, pois que os informes deverão ser escoimados ou decantados de seus falsos valores. Por outro lado, ao elaborar a sua informação, o analista não pode deixar de levar em conta o pragmatismo dos seus trabalhos, preocupando-se com o grau de utilidade que o conhecimento final produzido irá ter para quem vai dele se utilizar. Segundo o resumo visto sobre a Teoria do Conhecimento filosófico, podemos estabelecer as relações de analogia com o Conhecimento da Atividade de Informações. (QUEIROZ NETO, 1984, p. 10, grifo nosso).
Com estes dados, foi possível estabele- cer uma trajetória de argumentos para reflexão e obtenção do que se procura sobre as questões do conhecimento e so- bre esse modo tão singular de produção de conhecimento que se dá no âmbito da Atividade de Inteligência, e assim poder atingir o objetivo proposto.
Segundo filósofos modernos, os funda- mentos do conhecimento são estudados pela filosofia. Tais fundamentos refletem as circunstâncias em que ocorrem as for- mulações de teorias, as quais traduzem a realidade dos cenários de cada época. Por isso, a primeira indagação deste trabalho é a que o título sugere: Fundamentos do Conhecimento de Inteligência.
A produção de Conhecimento de Inteli- gência utiliza uma metodologia baseada nas regras cartesianas e esse conheci- mento deve ser verdadeiro ou pr ovável, fundamentando suas conclusões em evi- dências contidas nas frações significati- vas destacadas nos fatos e situações em produção. O profissional de inteligên- cia, usando a metodologia adotada, for - mula uma imagem imparcial e objetiva em sua mente que deverá cor responder totalmente ao objeto (fato ou situação). Este é o discurso contido nos ensinamentos da Escola de Inteligência (Esint) (grifo nosso).
Omencionado discurso estaria fundamen- tado na Doutrina Nacional de Inteligên- cia, a qual dispõe sobre os fundamentos em seu preâmbulo:
Para garantia de sua eficácia, a Doutrina Nacional de Inteligência adota como fundamentos, de um lado, a teoria de sentido especulativo e universal e, de outro, a própria realidade em suas dimensões interna e externa. Do primeiro fundamento, a teoria, derivam pro- posições situadas predominantemente no plano do dever ser; do segundo, realidade, emergem preceitos que se colocam basicamente na ordem do ser. O correto entrosamento dessas pro- posições e desses preceitos garante à Doutrina Nacional de Inteligência caráter de atualidade e praticidade. (SISTEMA..., 2004, p. 12).
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Os fundamentos do Conhecimento de Inteligência
O teor do discurso e a teoria de sentido especulativo e universal referida na dou-
trina me levam a considerar alguns aspec- tos. A mencionada teoria revela um am- plo leque de possibilidades, porém, im- precisas ao não indicar nominalmente qual o referencial teórico que fundamenta a produção de conhecimentos, fato que não ocorre com o discurso - baseado no con- teúdo da nota de aula denominada Pro- dução de Conhecimentos - no qual se identifica, de forma explícita, fundamen- tos da Teoria do Conhecimento formula- da no século XVII, sistematizada por John Locke e inspirada no racionalismo, afir-
mando a capacidade que o homem tem de conhecer a realidade que o circunda.
Outro aspecto e que resulta desta constatação, é o de explicitar em que con- siste a Teoria do Conhecimento, para de- pois identificar sua correlação com o dis- curso e assim verificar quais fundamentos são utilizados pela Atividade de Inteligên- cia. Para compreendermos como estes fun- damentos seriam utilizados e o porquê da sua adoção, é necessário em primeiro lu- gar definir o que é Inteligência.
A doutrina preconiza que Inteligência é:
[...] o exercício permanente de ações especializadas orientadas para obtenção
de dados, produção e difusão de conhecimentos, com vistas ao assessoramento de autoridades governamentais, nos respectivos níveis e áreas de atribuição, para o planejamento, a execução e o acompanhamento das políticas de Estado. Engloba, também, a salvaguarda de dados, conhecimentos, áreas, pessoas e meios de interesse da
sociedade e do Estado. (SISTEMA..., 2004, p. 15).
Por se tratar da produção de conhecimen- tos deste cabedal e objetivá-lo verdadei- ro, imparcial, oportuno e útil, resultante
de representação de fatos e situações pro-
duzidas pela mente especializada do pro- fissional de Inteligência, e considerando a missão atribuída à Atividade de Inteli- gência, conforme o conceito supracitado, deve-se entender a importância da ado- ção de fundamentos filosóficos que sus-
tentem um arcabouço teórico condizente
com os interesses desta atividade. Para argumentar sobre esses fundamentos, necessário se faz lembrar um pouco da história e do conteúdo da teoria adotada pela Inteligência para melhor visualizar a
razão da escolha.
Comumaposição de mediaçãoentre o racionalismoeo empirismo, surgiuuma orientação epistemológica denominada Intelectualismo afirmando queoconhecimentotem a participaçãodeambos, pois enquantoo racionalismo participacomae xistência dejuízosnecessários ao pensamentoecom validade
universal,o empirismo sustentaqueretira os elementosdesses juízos da xperiência.
Uma Teoria do Conhecimento é formula- da a partir das necessidades que o ho- mem tem de garantir a sua sobrevivência, o que ocasiona questões de ordem práti- ca e do pensamento, considerando que para fazer frente ao mundo que o rodeia, primeiramente precisa compreendê-lo e
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conhecê-lo, para então sobreviver. Isso leva o homem a produzir mecanismos suficientes às suas necessidades cada vez mais crescentes e a se indagar o que mais poderá fazer a respeito. Desse processo surgiram, ao longo do tempo, as ques- tões identificadas e estudadas pela filoso- fia, o que ensejou a formulação de teori- as sobre o conhecimento. No século XVII, ocorreu uma sistematização, com metodologias e procedimentos, sob uma posição filosófica de princípios e funda- mentos racionalistas, para encontrar res- postas às questões da possibilidade, da origem e da essência do conhecimento, validando-o.
Abordar unilateralmente a Teoria do Co- nhecimento que fundamenta o Conheci- mento de Inteligência sem mencionar al- gumas existentes no universo filosófico, ou pelo menos as mais utilizadas e co- nhecidas, bloqueia a compreensão daquilo que se quer mostrar e também impossi- bilita a amplitude necessária à consecu- ção do objetivo a alcançar.
Para não estabelecer uma longa faixa de tempo que possa levar a digressões não objetivadas por este trabalho, começarei pela formulação da Teoria do Conheci- mento que, ao ser sistematizada, possi- bilitou saltar da gangorra filosófica metafísica desde Sócrates para uma esta- bilidade epistêmica, a qual permaneceu inconteste até meados do século XX, nos efervescentes anos sessenta, quando o movimento pós-moderno, com suas crí- ticas ao estabelecido, apresentou uma negação total da teoria do conhecimen- to, ocasionando uma aparente ruptura epistemológica.
A Teoria do Conhecimento, a partir do século XVII, passou a nortear as ciências
particulares, apresentando-se como mais um ramo da filosofia e priorizando o su- jeito do conhecimento ao afirmar sua ca- pacidade cognoscente para conhecer uma realidade exterior ao seu pensamento e assim atingir a verdade do conhecimento.
No entanto, essa visão racional, conside- rada um marco para a filosofia e as diver- sas ciências particulares, não passou in- cólume por mudanças e transformações de cenários com circunstâncias peculia- res às épocas, que ensejaram o apareci-
mento de teorias, doutrinas, escolas e pensamentos vários, para concordar ou
discordar sobre o que se formulava a res- peito do conhecimento, sob a ótica do interesse de cada segmento. Aliás, os
pensadores do século XVIII chegariam à conclusão de que não existiria verdade
universal, por isso, cada segmento deve- ria procurar a verdade do tipo de conhe- cimento do seu interesse, apagando as- sim a concepção que predominava desde os gregos com a ideia absoluta e o espíri- to absoluto do medievo.
As questões da Teoria do Conhecimento, ou seja, as mesmas desde que o homem passou a descobrir a si mesmo antes de perguntar sobre o mundo, permaneceram como objetos de questionamento para a elaboração de novos pensamentos, à épo- ca. Isso porque a influência medieval era consistente, pela forte presença do cristia- nismo que até então respondia a todos os questionamentos com a verdade do misté- rio divino. Os pensadores modernos, ao
constatarem a separação estabelecida en- tre Deus e o homem, pelo cristianismo,
em face do pecado original, se depararam com umgrande problema: pode o homem,
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Os fundamentos do Conhecimento de Inteligência
um pecador, conhecer a realidade que o
cerca com seus misteriosos objetos a co- nhecer? A resposta dos filósofos moder- nos foi que poderiam, sim, e por intermé- dio da razão humana. Assim, estabelece- ram que o homem passasse a ser o sujeito e o objeto do seu conhecimento.
...sobreessaquestão há doisentendimentos opostos: oentendimentoque nega apossibilidade de conhecermos,como o ceticismoesuasvariantes, e oentendimentoque afirma quepodemosconhecer , comoodas doutrinas dogmáticaseas materialistas.
Daí, a razão passou a fundamentar o co- nhecimento e René Descartes, com o Cogitoergosum e a Dúvidametódica ,
desenvolveu todo um trabalho voltado à razão, cujos princípios permanecem, con- forme se vê, quando da elaboração de qualquer conhecimento, pois sempre ana-
lisamos as causas que podem nos levar a erro, ou seja, os preconceitos e a veloci- dade com que concluímos sobre algo sem verificar se os juízos emitidos são verda-
deiros. Concomitantemente, John Locke concluiu que todos os princípios do co-
nhecimento derivam da experiência, res-
ponsável pela existência das nossas ideias, enquanto Descartes afirmava que o co- nhecimento deriva da razão, por opera- ções do nosso intelecto.
Surgiram então duas perspectivas diferen- tes para a Teoria do Conhecimento. Es- sas perspectivas resultaram no apareci-
mento de várias concepções, principal-
mente por pensadores com posição céti- ca e suas variantes absolutas e relativas.
Com uma posição de mediação entre o racionalismo e o empirismo, surgiu uma
orientação epistemológica denominada
Intelectualismo afirmando que o conhe- cimento tem a participação de ambos, pois
enquanto o racionalismo participa com a
existência de juízos necessários ao pen- samento e com validade universal, o
empirismo sustenta que retira os elemen- tos desses juízos da experiência.
Porém, pela visão da Teoria do Conheci- mento, somos capazes de conhecer. Nos- sa consciência tem uma atividade sensí-
vel e intelectual, com um poder de análi-
se e síntese e representação dos objetos por intermédio de ideias e de avaliação, bem como de interpretação desses obje- tos, por meio de juízos, e não por meio da luz divina (na visão do cristianismo),
como até então se acreditava.
Somente no final do século XIX, Edmund Husserl, da escola alemã, apresentou uma
nova abordagem do conhecimento, pela
fenomenologia, para descrever a Teoria do Conhecimento em âmbito geral, o que representou de forma mais contundente, diante das várias concepções reinantes, a sistematização efetuada por Locke. A
fenomenologia visa descrever todos os
fenômenos, os materiais, naturais, ideais, culturais, do conhecimento e das realida- des, e considera o fenômeno como a pre- sença real das coisas reais diante da cons- ciência, daquilo que se apresenta direta-
mente a ela. Também se propõe afirmar a
prioridade do sujeito do conhecimento com consciência reflexiva diante dos ob- jetos, aos quais intenciona, visa, pro-
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Josemária da Silva Patrício
curando apreender as características e de- terminações destes objetos, o que é basilar a todo conhecimento. Por isso, a fenomenologia não afirma que o homem possa conhecer a realidade em toda a sua essência, e sim somente tal como apare- ce e se apresenta a sua consciência e o faz por intermédio de representações ou afigurações.
Assim, a metodologia fenomenológica, considerando a capacidade de o homem conhecer um fenômeno exterior à sua consciência e definindo o conhecimento como relação do sujeito com o objeto, destaca que este se constitui de três ele- mentos: o sujeito cognoscente, fonte de intencionalidades; o objeto a conhecer, independente do seu pensamento; e a imagem formada pela mente do sujeito, correspondente ao objeto. Portanto, o processamento do fenômeno do conhe- cimento ocorre da seguinte maneira: na relação, a função do sujeito é apreender, captar o objeto, o qual tem a função de ser apreendido pelo sujeito. Essa apreen- são figura para o sujeito como uma saída de sua própria esfera para invadir a esfera do objeto, apreendendo as determinações ou as propriedades deste. Nisto, o obje- to não é arrastado para a esfera do sujei- to, ele permanece independente, não sen- do nele que ocorre uma alteração pela função cognitiva. É no sujeito que houve alteração com o surgimento da imagem contendo as determinações do objeto, para o qual esse fato se apresenta como um alastramento das suas determinações no sujeito, ocasionando uma preponde- rância do objeto sobre o sujeito, tornan- do-o determinado e ele, o objeto, determinante.
Porém, com isso, o sujeito não passa a ser um simples determinado, mas apenas
a imagem do objeto na sua mente que o é, e nessa determinação pelo objeto há receptividade do sujeito a respeito dele, objeto, em razão da intencionalidade. Ao mesmo tempo se apresenta uma espon- taneidade do objeto a respeito da ima- gem em formação, na qual a mente terá uma participação criadora na sua repre- sentação, isto porque o sujeito lhe dá sig-
nificado, com a intencionalidade. Toda- via, quando determina o sujeito, o objeto mostra-se independente, transcendental, pois todo conhecimento visa a um objeto independente da consciência cognos- cente, por isso todos os objetos do conhecimento são transcendentes, reais ou ideais. Os reais são os dados na expe- riência externa ou interna, e os ideais são os meramente pensados e mesmo assim possuem um ser em si, uma transcendência. Como na matemática e as operações aritméticas com os núme- ros, eles existem, mas são objetos ideais e não reais.
Consequentemente, na visão feno- menológica, ocorre o fenômeno do co- nhecimento quando o sujeito capta as determinações do objeto e com isso for- ma uma imagem do mesmo e, para efe- tivar esse conhecimento, a imagem de- verá corresponder totalmente ao obje- to, pois se assim não for, teremos ape- nas um erro, não do objeto, mas ocorri- do na mente do sujeito. Contudo, essa descrição do processo do conhecimen- to pelo método fenomenológico não ex- plica e nem interpreta o conhecimento, apenas descreve o fenômeno ocorrido, cabendo à Teoria do Conhecimento fazê- lo, o que nos reporta às indagações que dizem respeito à possibilidade, a origem, a essência, os tipos do conhecimento e o critério da verdade.
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Os fundamentos do Conhecimento de Inteligência
Cabendo à Teoria do Conhecimento a in-
terpretação filosófica do fenômeno do co- nhecimento, vejamos sob a visão de ou-
tras concepções que, quiçá, possibilite ampla condição de avaliação do por que se julgaria como mais apropriada a Teoria do Conhecimento para fundamentar o Conhecimento de Inteligência. Conside- remos que todas as teorias ou entendi- mentos acerca do conhecimento come- çam questionando seus elementos sobre a possibilidade de conhecer, o que dá sequência à abordagem das demais ques- tões da filosofia sobre o conhecimento.
Estabelecidaaessência do conhecimentocomo relação entreosujeitoeo objeto, conformeafirma o materialismo filosófico, resta-nossaberaorigem do conhecimento.Saberse os sentidos,arazãoea intuição participamdoconhecimento .
Se existe possibilidade do conhecimento, ou seja, se a nossa mente é capaz de co- nhecer e refletir de forma adequada so- bre o que nos rodeia, se é capaz de efeti- vamente captar o objeto, conhecer a sua verdade - essa dúvida também poderá ocorrer na Atividade de Inteligência, ao perguntarmos se o profissional de Inteli- gência pode chegar à verdade dos fatos e situações utilizando o modelo da Teoria do Conhecimento pela descrição fenomenológica -, sobre essa questão há dois entendimentos opostos: o entendi- mento que nega a possibilidade de co- nhecermos, como o ceticismo e suas va- riantes, e o entendimento que afirma que
podemos conhecer, como o das doutri- nas dogmáticas e as materialistas.
Os céticos absolutos negam que o sujei- to seja capaz de apreender o objeto, ali- ás, o desconhecem e concentram toda sua atenção nos fatores subjetivos do conhe- cimento humano. Suas variantes relativas negam parcialmente a possibilidade de conhecer a verdade em determinados campos e na sua totalidade, ou seja, o homem só pode conhecer a aparência das coisas e não a sua essência. Só podería- mos conhecer a manifestação exterior da coisa em si (o objeto) como se apresenta à nossa consciência, sendo tarefa do nos- so pensamento dar forma e ordem nessas sensações, conforme Kant. Por isso, não conhecemos a sua essência e sim a re- presentação, revestida dos elementos sub- jetivos nos quais a enquadramos, o que podemos ver no ceticismo relativo de Kant, no positivismo de Comte e na fenomenologia de Husserl, representan- do as variadas formas do ceticismo.
O entendimento que afirma a possibilida- de de conhecer se manifesta no dogmatismo e no materialismo filosófico.
A doutrina dogmática, com sua crença de conhecer a verdade absoluta, de forma imediata e direta por meios empíricos, racionais ou suprarracionais, ignora des- se modo o conhecimento como uma re- lação entre o sujeito e o objeto. Quanto ao materialismo filosófico e sua variante, o materialismo dialético, revelam-se como mediadores entre o ceticismo relativo e o dogmatismo, ao afirmarem da existência real do mundo exterior refletido por nos- sa consciência, e distinguindo o objeto do sujeito cognoscente. Afirmam também e principalmente que a matéria é anterior à consciência, e nossas sensações, re-
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Josemária da Silva Patrício
presentações e conceitos são reflexos das
coisas que existem, independentemente da nossa consciência.
Destacados alguns entendimentos sobre a capacidade do sujeito conhecer ou não,
pergunta-se em que consiste o conheci-
mento, a sua essência, que relação há entre o sujeito e o objeto, o que constitui questão fundamental para a filosofia e as atividades em geral, e que nos arrasta à questão do centro de gravidade no fenô-
meno do conhecimento: o que prepon-
dera, o sujeito ou o objeto? Essa também seria uma preocupação crucial para a Ati- vidade de Inteligência, considerando que hoje nos deparamos, pelo menos no mun- do ocidental e em relação a diversas ati-
vidades, com um conflito de mentalida-
des. Esse conflito resultaria do fato de que algumas instituições com atividades se- culares de Estado veem o conhecimento como uma criação fundamentada por prin-
cípios e modelos já estabelecidos, sendo
o objeto o elemento preponderante do conhecimento, crença vigente à época das formulações. Hoje temos uma geração formada sob a orientação de outra posi- ção filosófica para a qual o elemento pre- ponderante do conhecimento é o sujei- to, e acreditando ser o conhecimento uma construção do homem interagindo com seu meio social e as diferenças ali existentes.
Da essência do conhecimento precisamos estabelecer o referido centro de gravida- de. O aspecto nevrálgico da preponde- rância nos apresenta entendimentos an- tagônicos e, considerando o fator huma- no, nunca deixarão de sê-lo, só restando
a cada atividade optar pela interpretação mais apropriada aos seus fins e interes- ses. Responder qual o elemento prepon-
derante no conhecimento, se a realidade
ou a consciência, o sujeito ou o objeto, se a consciência é um reflexo e reprodu- ção do objeto, ou o objeto é um reflexo e uma reprodução da consciência, dois seg- mentos doutrinários, o idealismo e o ma- terialismo, nos apresentam os seguintes
entendimentos: o idealismo e suas vari-
antes (objetiva e subjetiva) afirmam que o sujeito determina o objeto. A variante objetiva afirma que o que prepondera é a
ideia absoluta, o espírito universal, a von- tade universal existentes antes da nature- za e dos homens e teria criado o mundo, sendo que todas as coisas materiais são
seus produtos, o que podemos exemplificar por Platão, com o Mito da
caverna, e Hegel, com seu Demiurgo. A variante subjetiva apregoa o eu absoluto da consciência do sujeito individual, afir- ma que toda realidade está encerrada na
sua consciência, sendo a matéria uma ideia que dela fazemos, é uma construção da consciência.
Contrapondo-se a esse entendimento, o materialismo filosófico nos afirma que há objetos reais e independentes do pensa- mento, que a matéria é anterior à consci-
ência, que é o reflexo ou produto da ma- téria. Ao materialismo filosófico se atri- bui resolver cientificamente o problema fundamental da essência do conhecimen- to ao mostrar que o mundo é material por natureza, considerando o ser (obje-
to) como matéria, e que nossas sensações e ideias são imagens do mundo exterior.
Estabelecida a essência do conhecimento como relação entre o sujeito e o objeto, conforme afirma o materialismo filosófi-
co, resta-nos saber a origem do conheci- mento. Saber se os sentidos, a razão e a intuição participam do conhecimento. Vis-
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Os fundamentos do Conhecimento de Inteligência
to pela ótica de cada um desses elemen- tos, teremos o empirismo, o racionalismo, intuicionismo e o materialismo dialético.
Oempirismo, espécie que tem como úni- ca fonte do conhecimento a experiência recebida pelos sentidos e que acredita
suficiente para conhecer a verdade, tem como forma de conhecimento a sensa- ção, a percepção e a representação.
O racionalismo defende que a fonte do
conhecimento é a razão, o pensamento abstrato. Afirma que os sentidos nos en-
ganam e, portanto, não podem produzir
umconhecimento verdadeiro, logicamente necessário e universalmente válido, o qual
só pode ser alcançado pela razão.
O Intuicionismo afirma que é possível conhecer a verdade sem os sentidos e a razão, mas por uma faculdade irracional
ou sobrenatural chamada intuição.
O materialismo dialético, apesar de afir- mar serem o empirismo, racionalismo e intuicionismo unilaterais, propõe uma sín-
tese dos três, como partes na elaboração do conhecimento, que é um processo dialético. Essas referências podem ser
identificadas no discurso da Atividade de Inteligência.
Ao apresentar os diversos entendimentos sobre a origem do conhecimento nos vem a indagação sobre seus tipos e formas,
pelo menos os mais conhecidos, que são o racional discursivo e o intuitivo. No ra- cional discursivo, a consciência serve-se
de diversas formas de operações mentais, como a ideia (ou conceito), juízo e racio- cínio, relacionando o objeto a outros,
comparando e tirando suas conclusões. É um conhecimento mediato. No tipo in- tuitivo, o conhecimento é imediato, o
olhar apreende imediatamente o objeto, é uma experiência externa que se baseia nos juízos que temos nas leis lógicas do
pensamento. Essa apreensão imediata do objeto se dá sob as formas da intuição sensível, intuição mística e a intelectual.
Vistas algumas questões detectadas na
descrição fenomenológica do conheci- mento, estas nos direcionam para a gran-
de questão da validade do conhecimen-
to: a verdade, e o critério utilizado para lhe atribuir a certeza. O conceito de ver-
dade, como a concordância do conteúdo
do pensamento com o objeto, constitui a concepção transcendente de verdade, no
entanto, há o conceito da imanência que
afirma ser a verdade a concordância do pensamento consigo mesmo, e nada existir
exterior à consciência. Portanto, manifes-
tam-se assim os segmentos idealistas e materialistas, bem como os aspectos sub-
jetivos e objetivos da verdade. O idealis-
mo subjetivo versa sobre o conceito imanente de verdade, e o objetivo, sobre
a concepção transcendente.
Não podemos ignorar, todavia, a doutri- na denominada e conhecida por pragmatismo, afirmando um entendimen-
to oposto à corrente que defende a transcendência. Segundo esta doutrina, o conhecimento é verdadeiro quando pro-
duz resultados práticos e eficazes, sendo seu critério de verdade a utilidade. O pragmatismo ignora o conhecimento
como relação do sujeito e objeto.
Como podemos afirmar, a certeza da ver- dade é incumbência dos critérios e há várias concepções para atribuir essa cer-
teza, a saber: o critério da autoridade (uti- lizado pela teologia), o da evidência (de- fendido pela teoria do conhecimento e a
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inteligência), o da ausência de contradi- ção (idealismo subjetivo), da utilidade (pragmatismo, materialismo dialético) e o da prova (ciências particulares). O cri- tério da evidência, como o mais conhe- cido e aceito, é visto como plena clare- za da verdade e a certeza é o estado sub- jetivo que a acompanha. Porém, não é um critério último de verdade, pois fa- tores como a ignorância, ilusões dos sen- tidos, paixões e preconceitos podem le- var a uma falsa evidência, precisando, portanto, de outro critério para atribuir à verdade uma certeza.
O critério da evidência nos lembra uma questão bastante controversa para a Ati- vidade de Inteligência, a imparcialidade. Pode o sujeito conhecer de forma im- parcial? Argumenta-se o seguinte: no processo do conhecimento, o sujeito apreende as determinações ou proprie- dades do objeto e a imagem formada deverá corresponder totalmente a este objeto e, como este é transcendente ao sujeito, portanto, a imagem formada não deverá conter o já existente no pensa- mento do sujeito e sim corresponder somente às propriedades que são apre- endidas do objeto, o que resultaria numa imagem imparcial, ou o mais próximo possível da mesma.
Utilizando também da argumentação do materialismo filosófico e dialético, do su- jeito ser capaz de conhecer a verdade objetiva, que afirma a apreensão do obje- to com suas determinações e característi- cas essenciais, é possível a imparcialida- de, argumento aceito até pelos céticos relativos. Somente na concepção idealis- ta subjetiva a concordância do pensamen- to é consigo mesmo e não com o objeto.
Contudo, todas essas concepções acerca do conhecimento humano vigoraram incontestes aproximadamente até meados
do século XX, principalmente para a ati- vidade científica e instituições seculares de estado e alguns pensadores. Até hoje,
seja qual for a teoria que sistematiza a produção do conhecimento, ela se orien- ta pelos mesmos princípios diante da pro-
blemática de interesse, ou seja, de fato ou situação ou qualquer objeto a conhe- cer. O homem planeja o que vai fazer,
coleta o material necessário, avalia suas fontes, interpreta e busca o que todos querem: o conhecimento considerado
verdadeiro. A base para esses procedi- mentos e entendimentos é a razão huma- na, em que os pensadores modernos
acreditaram.
Norteandoo Conhecimento deInteligênciacom seus fundamentos,esta teoria influencianãosomente a metodologiautilizada pela Atividadede Inteligência nasuaprodução, mas tambémnasquestões da suaidentidade;do perfil doprofissional;e do
produtofinaldopr ocesso depr odução.
Mas, o tempo é inexorável com as ideias, em razão de ocasionar mudanças e, por conseguinte, acarretar novos pensamen- tos diante dos desafios. A descontinuidade corrente na filosofia, a herança dos es- combros materiais e mentais da Segunda
Guerra Mundial, a bipolaridade
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subsequente, o estado pós-industrial, os
modelos existentes não correspondendo mais às necessidades e expectativas da sociedade e da ciência, a cibernética e o novo modelo de comunicação, o capital financeiro gerindo a política e a econo- mia, a formação de movimentos sociais,
o Construtivismo, a Gestalt, as ambições imperialistas, ensejaram, nos anos sessen- ta a oitenta, uma postura de negação e angústia diante da sensação de que o que se acreditava ou foi levado a acreditar, estava errado e não mais servia para a
sociedade, considerando o que houve e o que estava ocorrendo no mundo.
Assim, as bases e os valores racionalistas implantados desde o século XVII que
nortearam a filosofia e as ciências foram negados. Do racionalismo ao empirismo, do idealismo ao materialismo dialético. Não se ignorou, mas também não se de- fendeu as bandeiras do estruturalismo e
do construtivismo. Aconteceu uma rup- tura epistemológica e estabeleceu-se o pós-modernismo como uma posição fi- losófica discordante. Entre seus pensado- res mais conhecidos, destacam-se Sartre, Michel Foucault, François Lyotard, Gilles
Deleuze, Jaques Derrida e Bruno Latour, os quais negaram todas as teorias, valo- res, conceitos, doutrinas, enfim, tudo o que constitui o universo filosófico moderno.
As propostas pós-modernas partem da determinação de romper e descronstruir criticamente o modelo epistemológico que estava em vigor, bem como questio- nar fundamentos que girem em torno de verdades, recusar o dogmatismo da ciên- cia, isto é, recusar a ideia de que a ciên- cia é uma representação da realidade tal como é em si mesma e adotar a ideia de que o objeto científico é um modelo
construído, e questionar todas as formas
que nos conceituaram como sujeito e in- divíduo, principalmente junto às ciências humanas, das quais os modelos formula- dos não nos serviriam mais. As metodologias e procedimentos baseados num modelo racional discursivo passari-
am ao modelo similar ao construtivista e sem fundamentos prontos.
Como evidência da mencionada ruptura, usarei as questões da Teoria do Conheci-
mento como parâmetro da crucial
discordância à mentalidade moderna e às afirmações do discurso pós-moderno por destacados arautos. Quanto à possibili- dade do conhecimento, o ser humano não conhece ou não precisa conhecer a reali-
dade que o cerca, ele a constrói, pois a base racional e todo o discurso moderno seria, nesta nova visão, um disfarce para o exercício da dominação dos homens, por isso a negação a sistemas prontos que
induzem a pensar o que se quer que pen- se. A essência do conhecimento, que é a relação do sujeito e o objeto, foi consi- derada sem fundamento, pois tanto a fi- losofia quanto as ciências são construções subjetivas de seus objetos, os quais nada
mais são do que os resultados de opera- ções teóricas e técnicas, considerando que os cientistas não observam as realidades, mas as constroem. Portanto, os objetos independentes do sujeito não existem, são apenas construções teóricas.
Daí podem ser identificados reflexos do idealismo e a sua concepção imanente de verdade (a concepção imanente de ver- dade é defendida por uma parcela signifi-
cativa de pensadores pós-modernos), porém, aí não há construção interativa nenhuma, pois a apreensão do objeto pela mente do sujeito corresponde ao conteú-
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do da própria mente, sendo este um pro- cesso individual. A filosofia e o próprio conhecimento, passaram a ser considera- dos uma criação feita pela linguagem, as- sim como a literatura, onde não se diz como as coisas são, elas são criadas, e esse entendimento é reflexo do estruturalismo.
A origem do conhecimento não é conce- bida como no modernismo, pois o ho- mem não é um animal racional com livre vontade, ele é passional, se move por ins- tintos e por isso instituiu uma ordem social para reprimir seus desejos e paixões, pro- posição diametralmente oposta ao pen- samento moderno. A verdade do conhe- cimento como correspondência da ima- gem formada, cujo critério é a evidência, não seria apropriada, considerando que o conhecimento, seja qual a espécie, só é válido se for útil e eficaz para a obtenção dos fins desejados por quem conhece, não importando que fins sejam esses.
O discurso que reveste essa concepção de critério da verdade pode ser identifica- do no pragmatismo e no materialismo dialético, se bem que os pensadores da escola de Frankfurt, que foram os últimos a abandonar a versão comunista do mate- rialismo dialético, nada levaram ou contri- buíram com esta doutrina para o pós-mo- dernismo, considerando que os pós-mo- dernos também negaram o socialismo apa- rentemente em razão do modelo russo.
Todavia, as concepções, os conceitos, as significações, proposições e enunciados, segundo a linguagem de Foucault, logo tiveram discordâncias, isto é, o mesmo fenômeno ocorrido à teoria do conheci- mento, e a pós-modernidade passou a ser denominada de neo-capitalismo, lógica cultural do capitalismo tardio, modernidade líquida, neo-conservadora em combate aos ideais iluministas.
Por conseguinte, passando por descontinuidades e rupturas ou propos-
tas de ruptura na história do conhecimen- to, os períodos mais marcantes da filoso- fia nos legaram pelo menos quatro siste- mas que revolucionaram o pensamento humano, notadamente no milênio anteri- or, que foram a metafísica grega, a teolo- gia do medievo, a teoria do conhecimen- to moderna e a concepção pós-moderna do conhecimento.
A visão das diversas concepções, doutri- nas e teorias versando sobre a essência, possibilidade, origem, tipos, formas e cri- tério de verdade do conhecimento, pos- sibilita a oportunidade de constatar que, do discurso da Atividade de Inteligência e do disposto em sua doutrina, podería- mos afirmar quais fundamentos da Teoria do Conhecimento foram utilizados para a formulação de uma peculiar teoria do conhecimento de Inteligência.
Esta afirmação pode ser verificada ao iden- tificarmos fundamentos do materialismo filosófico na afirmação de que o profissi- onal de Inteligência pode produzir conhe- cimentos pela metodologia com a qual trabalhamos, dirimindo a questão da pos- sibilidade do conhecimento. Também se- riam fundamentos oriundos do materia- lismo dialético e do intelectualismo as explicações sobre a origem do conheci- mento como conjugação do racionalismo e empirismo, que compõem a represen- tação de fatos ou situações; que seria dos fundamentos identificados na descrição fenomenológica da Teoria do Conheci- mento e no realismo crítico, a explicação sobre a essência do conhecimento como relação do sujeito e objeto e que este pre- pondera sobre aquele; que o tipo de co- nhecimento que se produz é identificado com o racional ou abstrato; e as formas
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que utilizamos conferem com as do co- nhecimento racional (conceito ou ideia, juízos e raciocínios).
Assim, se entendermos como teoria o conjunto de concepções, fundamentos,
conceitos, metodologias e demais proce- dimentos formando uma singular posição filosófica que sustenta a existência da Ati- vidade de Inteligência enquanto produ- tora de conhecimentos e diretamente norteia o exercício da atividade, a Teoria do Conhecimento passaria a ser a mais apropriada, pela correlação aos interes- ses de objetivos e sobrevivência desta ati- vidade, dando a validade necessária ao conhecimento produzido.
Norteando o Conhecimento de Inteligên- cia com seus fundamentos, esta teoria in- fluencia não somente a metodologia utili- zada pela Atividade de Inteligência na sua produção, mas também nas questões da sua identidade; do perfil do profissional; e do produto final do processo de produ- ção. Por conseguinte, não podemos atri- buir a responsabilidade de todo o proces- so somente às regras cartesianas, aponta- das como inspiradoras da metodologia uti- lizada, considerando que só temos em mente os princípios contidos nas mesmas quando da aplicação da metodologia, e não da atividade como um todo.
A Atividade de Inteligência com a atribui- ção de produzir conhecimentos sobre fa- tos e situações constantes da realidade, objetivando assessorar as decisões gover- namentais em benefício do Estado e da sociedade, teria que adotar um arcabouço teórico apropriado que fundamentasse o exercício da atividade. Para escolha, teve a seu dispor desde a metafísica grega e a te- ológica, a teoria moderna e a concepção pós-moderna do conhecimento. E teria
julgado uma delas, a Teoria do Conheci-
mento sob a visão fenomenológica, a mais adequada ao objetivo a que se propõe, em face das correlações já mencionadas.
Essas correlações também se prendem ao fato de que, se a produção de conheci- mentos de inteligência objetiva represen- tar a realidade, portanto, sob uma posi- ção cética relativa, não possibilitaria facil- mente a utilização de metodologias fun-
damentadas em teorias de construção interativa do conhecimento (diferindo de várias ciências particulares), em razão dos
fins a que se destina o mencionado co- nhecimento. Obviamente, não é impossí- vel, mas ainda não se vê claramente que processo pós-moderno seria adequado
para representar fatos e situações que já
ocorreram, ocorrem e poderão vir a ocor- rer, mostrando deles a verdade (para a Atividade de Inteligência), por evidência, sem cair em erro ou possível dispersão
resultantes apenas da cosmovisão de cada
profissional e assim se distanciar do fato em si, sem utilidade para o usuário.
Consequentemente, ao final destes argu- mentos, os quais representam os objetos pesquisados e não o conteúdo da minha
consciência, pode-se constatar que, para a Atividade de Inteligência, as questões da filosofia acerca do conhecimento não se transformaram em problemas por ra-
zão da crença na posição filosófica ado-
tada. A certeza dessa crença seria deriva- da dos valores e concepções funda- mentadores considerados apropriados ao exercício da Atividade de Inteligência e para esta vigentes, apenas, passando a
serem discutidos e discordados quando
da comparação com a posição filosófica pós-moderna, de discurso oposto ao que utilizamos.
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Referências
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Resenha
LONDON, Mark; KELLY, Brian. TheLast Forest: The Amazon in
the age of globalization. New York: Randon House, 2007. 312p. ISBN 978-0-679-64305-0
Romulo Rodrigues Dantas
Os jornalistas Mark London e Brian
Kelly viajaram ao Brasil em 1980 e escreveram seu primeiro livro sobre a Amazônia. Na ocasião, de acordo com eles próprios, 3% da floresta já haviam sido destruídos. Vinte e cinco anos de- pois, segundo London, agora advogado, e Kelly, editor executivo do USNews and WorldReport, 20% não existiam mais.
Nesse sentido, a questão central da obra de London e Kelly é indagar se a floresta poderá ser salva. A resposta dos autores é otimista: “não é tarde para salvá-la”. En- tretanto, consideram que a solução ao desmatamento é tão complexa quanto a própria floresta.
Mesmo para os que vivem na região, “a floresta é uma área alienígena”. Os auto- res relatam que milhões de espécies dife- rentes coabitam a Amazônia, e cada uma desenvolveu maneira única e fascinante para sobreviver. Há lagartas que se mimetizam e assumem a forma de víbora, de modo a sobreviver; peixes com quatro olhos e dois pares de córnea e retina, uma para proteger-se de perigos que vem de cima e, outra, para buscar por comida, abaixo; plantas que se transformam de cipós em árvores, dependendo da quan-
tidade de luz solar. Para impedir que do- ença as extinga completamente, árvores de mesma espécie desenvolvem-se afas- tadas umas das outras.
Apesar disso, a mesma evolução e adap- tação que protege as árvores da extinção as expõem à destruição pelo homem. Pelo fato de que certos tipos de madeira são mais valiosos do que outros, não é incomum madeireiros abrirem trilhas na floresta apenas para chegar à árvore es- pecífica. Os autores consideram que “as cicatrizes que essa prática causam não saram. Tais trilhas, minúsculas, usualmente são visíveis do alto, com padrão que lem- bra um rio ao contrário. Ofim dessa linha é o local onde antes existia um mogno centenário”.
A primeira incursão na floresta revela apa- rente “irresistível percepção” de desen- volvimento. As trilhas começam a se divi- dir e a conduzir a pequenas estradas vicinais e a acessos a fazendas ou a pas- tagens. SegundoTheLastForest, 85% do desmatamento ocorrem a partir das es- tradas, em média 50 quilômetros, bilate- ralmente. Com base em tais informações, estima-se que a floresta perderá um quarto do seu tamanho original até 2020.
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É possível que circunstâncias drásticas demandem medidas igualmente drásticas. Ainda que prevaleça a crença de que a única maneira de salvar a Amazônia seria mantê-la completamente intocada, London e Kelly argumentam que esse pen- samento não é apenas “desatualizado”, mas, principalmente, “perigoso”. Para eles, “atualmente, salvar a Amazônia im- põe também salvar as pessoas que vivem na Amazônia”.
Para London e Kelly, resposta a essa constatação implica abordagem colaborativa que une preservação com desenvolvimento. O livro cita que o go- verno do Brasil já adota políticas nesse sentido. “Não é proveitoso pessoas afir- marem, sobretudo do exterior, que a Amazônia – que ocupa mais da metade do território – precisa ser mantida como santuário da humanidade, e esquecer que cerca de 20 milhões de pessoas vivem na região”, conforme disse o presidente bra- sileiro. Com o argumento de que desmatamento legal e monitorado é pre- ferível à situação corrente, “caótica”, os autores destacam que o governo brasilei- ro pretende leiloar direitos de exploração madeireira em vastas áreas da região.
TheLast Forest apresenta a Amazônia como terra onde “abundam oportunida- des para o desenvolvimento, se aprovei- tadas de maneira correta, e não é correto reconhecê-la apenas como região selva- gem e exótica, mas como uma das últi- mas fronteiras da terra”.
Como base para esse argumento, London e Kelly apontam novas evidências antro- pológicas as quais sugerem que grandes sociedades – com canais, pontes, ruas pavimentadas e milhares de pessoas – podem coabitar na bacia amazônica sem destruí-la. Apesar disso, os autores in- formam que “essa constatação não pro- vê muita esperança, ainda que existam pesquisas em andamento, de que ocu- pação no século XXI também reproduza tal percepção de harmonia”, mas isso é parte da base do otimismo deles. O res- to é parte de suas próprias pesquisas na Amazônia, as quais revelam soluções criativas ao desmatamento, ainda que limitadas.
O capítulo “AWaytoSavetheAmazon ” aborda várias dessas soluções: programas de incentivo, bem remunerados, para pes- soas que, de outra forma, seriam empre- gadas no desmatamento ilegal; florestas “certificadas”, onde árvores seriam cor- tadas mediante método de rotação, para proteger espécies; e uso alternativo da terra, desde a produção de juta a fazenda de criação de peixes exóticos.
London e Kelly admitem que tais soluções não são perfeitas, e nenhuma delas consti- tui-se panacéia. Entretanto, são exemplos de tentativas honestas de proteger a Ama- zônia, principalmente por pessoas que têm determinação em usá-la. Por fim, chegar a esse equilíbrio pode ser a esperança que TheLastForestpretende informar.
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