
Revista Brasileira de Inteligência
Número 12, dezembro 2017, ISSN 1809 - 2632

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA
Revista Brasileira de Inteligência
ISSN 1809-2632
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Presidente Michel Miguel Elias Temer Lulia
GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Ministro Sérgio Westphalen Etchegoyen
AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA
Diretor-Geral Janér Tesch Hosken Alvarenga
SECRETARIA DE PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO
Secretário Antonio Augusto Muniz de Carvalho
ESCOLA DE INTELIGÊNCIA
Diretor Luiz Alberto Santos Sallaberry
Editora-Chefe
Ana Maria Bezerra Pina
Comissão Editorial da Revista Brasileira de Inteligência
Ana Maria Bezerra Pina, Delanne Novaes de Souza, Fábio Nogueira de Miranda Filho, Joanisval Brito Gonçalves, Marcos Rosas Degaut Pontes, Roniere Ribeiro do Amaral, Uver Oliveira Cabral.
Pareceristas
Ana Maria Bezerra Pina, César Luiz Bernardo, Daniel Almeida de Macedo, Delanne Novaes de Souza, Edson de Moura Lima, Fábio Nogueira de Miranda Filho, Joanisval Brito Gonçalves, José Renato de Oliveira, Marcos Rosas Degaut Pontes, Olívia Leite Vieira, Paulo Roberto Moreira, Pedro Jorge Sucena Silva, Pedro Nogueira Gonçalves Diogo, Roniere Ribeiro do Amaral, Ryan de Sousa Oliveira, Tarcísio Franco, Thiago Lourenço Carvalho, Uver Oliveira Cabral.
Capa
Carlos Pereira de Sousa
Editoração Gráfica
Giovani Pereira de Sousa
Revisão
Caio Márcio Pereira Lyrio, Geraldo Adelano de Faria, Thiago Lourenço Carvalho.
Catalogação bibliográfica internacional, normalização e editoração
Coordenação de Biblioteca e Museu da Inteligência - COBIM/CGPCA/ESINT
Disponível em: http://www.abin.gov.br
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Tiragem desta edição: 300 exemplares
Impressão
Gráfica – Abin
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É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta revista, desde que citada a fonte. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Revista Brasileira de Inteligência / Agência Brasileira de Inteligência.
– n. 12 (dez. 2017) – Brasília : Abin, 2005 –
124 p.
Anual
ISSN 1809-2632
1. Atividade de Inteligência – Periódicos 1. Agência Brasileira
de Inteligência.
CDU: 355.40(81)(051)
Sumário
5 Editorial
7 O PROCESSO DE RADICALIZAÇÃO E A AMEAÇA TERRORISTA NO
CONTEXTO BRASILEIRO A PARTIR DA OPERAÇÃO HASHTAG Thiago A. - Augusto O. - Allan S.
21 ESTUDO DOS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA:
UMA ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA COMPARADA Roberto Numeriano
35 QUANDO O SEGREDO É A REGRA:
ATIVIDADE DEINTELIGÊNCIA E ACESSO ÀINFORMAÇÃONO BRASIL Gills Vilar-Lopes
51 A IMPORTÂNCIA DA INTELIGÊNCIA COMO OBJETO DE ESTUDO PARA O CAMPO DA DEFESA NO BRASIL
Arthur Macdowell Cardoso
65 REFERENCIAIS BÁSICOS PARA A CAPACITAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE INTELIGÊNCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL
Hélio Hiroshi Hamada - Renato Pires Moreira
77 A MODERNIZAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ESTRATÉGICA NA PERSPECTIVA DA SEGURANÇA HUMANA
Danilo Coelho
91 INDICADORES ECONÔMICOS NA ANÁLISE DE INTELIGÊNCIA – ESTUDO SOBRE OS ÍNDICES DE RISCO SOBERANO
Eduardo Castello
107 PERSPECTIVAS E DESAFIOS DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA A PARTIR DA POLÍTICA NACIONAL DE INTELIGÊNCIA
Pablo Duarte Cardoso
117 ABSTRACTS

Editorial
A demanda por Inteligência vem crescendo substancialmente por parte dos mais diver - sos segmentos do Estado brasileiro, o que inclui das Forças Armadas e polícias a órgãos do Judiciário e áreas específicas, a exemplo da penitenciária. Nota-se que, pouco a pouco, o sistema universitário brasileiro vem adotando a Inteligência como disciplina ou objeto de estudo, algo já consolidado em várias partes do mundo.
Assim como cresce o interesse pela Inteligência, também aumenta a necessidade de integração entre órgãos do aparato estatal e da sociedade civil nessa matéria. Esse desafio de maior e efetiva cooperação se refletiu, neste ano, no trabalho conjunto do Sistema Brasileiro de Inteligência para elaboração da Estratégia Nacional de Inteligência e do Plano Nacional de Inteligência.
Nesse contexto, a 12ª edição da Revista Brasileira de Inteligência traz novas e estimu - lantes contribuições para o estudo e o debate dessa atividade e para o reconhecimento do papel da Atividade de Inteligência em prol do bem-estar da sociedade e dos inte - resses nacionais. Este periódico existe para contribuir no desenvolvimento dessa per - cepção da Inteligência como ferramenta imprescindível para o país. Os textos reunidos neste número retratam essa intenção.
O presente número é inaugurado por um texto que representa uma visão analítica da Operação Hashtag, que, sob a nova lei de antiterrorismo no Brasil, atuou sobre os cha - mados atos preparatórios de terrorismo, no contexto das Olimpíadas Rio 2016. Já para o fechamento desta edição, selecionamos um ensaio que contempla, sob a perspectiva da diplomacia brasileira, avanços e desafios institucionais da Atividade de Inteligência, a partir da recente Política Nacional de Inteligência.
Dois outros textos abordam a relação da Atividade de Inteligência com o regime de - mocrático brasileiro. Um deles trata da compatibilização do sigilo, característico da Atividade, com o direito de acesso à informação presente na democracia. O outro de - monstra as possibilidades que a análise em ciência política tem para tornar as agências de Inteligência conhecidas e compreendidas pela sociedade.
A perspectiva de Inteligência como elemento de capacitação é contemplada de duas formas: num texto, como objeto de estudo em programas acadêmicos de ensino; nou - tro, como conteúdo necessário à formação de servidores no setor de segurança pública.
Ratificando a percepção do crescente papel da Atividade de Inteligência na sociedade, um dos artigos demonstra como os limites na utilização desse recurso têm sido esten -
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didos do campo típico das ameaças à segurança do Estado para um paradigma rela - cionado às múltiplas ameaças à população. Por fim, outro artigo atrela a Inteligência à Economia, apontando indicadores para a avaliação da situação econômica de um país.
Para além de informar e esclarecer, desejamos que este número contribua para a am - pliação de um profícuo debate sobre Inteligência.
Que a leitura seja instigante!
Comissão Editorial
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O PROCESSO DE RADICALIZAÇÃO
E A AMEAÇA TERRORISTA NO CONTEXTO BRASILEIRO A PARTIR DA OPERAÇÃO HASHTAG
Thiago A. *
Augusto O. **
Allan S. ***
Resumo
EsteartigobuscaidentificaraspectosdaevoluçãodofenômenodoterrorismonoBrasila partir daanálisedaradicalizaçãodejovensbrasileirosconvertidosemcurtoperíodo.Essesindiví - duos,motivadospelosataquesperpetradospeloEstadoIslâmico(EI)naEuropa Ocidental, valeram-sedafacilidadedecomunicaçãoemmídiassociaisparaformarumaredefechada de apoioàsaçõesdoEInoBrasil,fosseparaemigrarparaaSíria,fosseparaumaaçãoviolenta em solopátrio.ArededejovensradicalizadosfoidesmobilizadapelaaçãodoDepartamento de PolíciaFederal(DPF),emjulhode2016,sobanovaleiantiterrorismo,naOperaçãoHashtag. É possívelanalisaroprocessoderadicalizaçãoobservadonoBrasilsobaóticadecinco camadas sobrepostas:comunidades,doutrinadores,defensoresdopensamentoradical, radicalizados dispostosàaçãoeosjáenvolvidosnaconsecuçãodeações específicas.
Palavras-chave: Terrorismo;Processoderadicalização;Operação Hashtag.
Introdução
Apercepção da ameaça terrorista pela Inteligência brasileira passou por vá -
rias fases nas últimas duas décadas. Essas fases acompanharam os rearranjos obser - vados no seu objeto, ou seja, os grupos terroristas, conforme suas características de maior ou menor grau de centralização,
autonomia decisória, organização, méto - dos de propaganda e fundamentação ide - ológica, e suas implicações no contexto temporal político e social brasileiro até o estágio mais recente, precedido por uma real ameaça detectada alguns meses antes dos Jogos Olímpicos Rio 2016. 1
* Oficial de Inteligência.
** Oficial de Inteligência.
***Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
1 O presente ensaio se baseia primordialmente nos dados e informações revelados e disponí - veis publicamente na denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) no contex - to da chamada Operação Hashtag e na posterior sentença prolatada pelo juiz federal Marcos Josegrei da Silva, da 14ª Vara Federal, em Curitiba/PR, primeira sentença no Brasil sob a égide da Lei nº 13.260/2016, que disciplina o crime de terrorismo e correlatos. Links para acessar essas duas peças podem ser vistos nas referências bibliográficas.
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Thiago A. - Augusto O. - Allan S.
Durante a década passada, a Inteligên - cia estudou o fenômeno do terrorismo a partir da análise dos diferentes grupos terroristas internacionais, identificação de possíveis células atuantes no Brasil e acompanhamento de indivíduos, residen - tes ou em trânsito no país, vinculados ou ideologicamente simpáticos a grupos ex - tremistas. A preocupação quanto à ame - aça de um atentado terrorista de matiz islâmico, nesse período, residia na even - tual possibilidade de uma ação planeja - da e coordenada utilizando o Brasil, se não como alvo, mas como palco, a partir de uma célula cuja unidade de comando estaria fora do país, vinculada a grupos como Al Qaeda.
Entretanto, até o período dos grandes eventos sediados no Brasil nos últimos anos, o risco de um atentado em territó - rio nacional sempre foi tido como míni - mo, considerando principalmente fatores socioculturais, contexto de inserção das comunidades muçulmanas nos estados da federação e posicionamentos da po - lítica externa brasileira.
A partir de 2014, com o despontamen - to do grupo terrorista autodenominado
redes sociais dos jovens brasileiros e à forma de inserção destes na comunida - de muçulmana. Apesar de o processo de radicalização de nacionais nesses úl - timos anos ter se iniciado a partir de ide - ologia disseminada pela Al Qaeda, com o EI esse processo se expandiu de ma - neira significativa, o que possibilitou a formação de uma efetiva rede extremista identificada no país em 2015.
Em face à imagem de brutalidade exposta pelo EI e estimulada pelas preocupações decorrentes dos vários grandes eventos sediados no Brasil nos últimos anos, a postura de negação do fenômeno como uma preocupação nacional, defendida por muitos operadores da política ex - terna brasileira3, diminuiu, e os dirigen - tes passaram a considerar o terrorismo como uma ameaça potencial. Os órgãos competentes esforçaram-se, então, para adequar seus métodos a essa nova re - alidade, com consequentes mudanças na estrutura pública ligada ao tema e no ordenamento jurídico, o que resultou na promulgação da Lei nº 13.260/2016.
Este ensaio será dedicado ao estudo dos processos de radicalização e formação
Estado Islâmico (EI)2 como principal de redes extremistas, com base no caso
ameaça terrorista no cenário interna - cional, esse fenômeno manifestou-se no Brasil com características próprias re - lacionadas principalmente a fatores so - cioculturais, particularmente no que diz respeito à dinâmica de comunicação em
da rede identificada em 2015, tendo como fontes primárias a denúncia ofe - recida pelo Ministério Público Federal (MPF) e a sentença exarada pelo juiz do caso. Em um primeiro momento, serão apresentadas hipóteses que ajudem a
2 Sobre a discussão a respeito de como se deve chamar esse grupo terrorista – se Estado Islâ - mico, ISIS, ISIL, Daesh etc. – cf. HASHIM (2014) e Zach Beauchamp, “ISIS, Islamic State or ISIL? What to call the group the US is bombing in Iraq”, OSINTJournalReview, 17 set. 2014. Em consonância com o exposto nessas referências, optou-se por utilizar somente “Estado Islâmico” ou EI neste artigo.
3 Cf. CUNHA (2009), cap. 5 – “O regime em construção – posições brasileiras”, em especial o item 5.1 – “Baixa prioridade do tema na agenda externa”, p. 113.
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O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro a partir da Operação Hashtag
compreender como se deu a formação da rede em tão curto período e por que ela era composta, em sua maior parte, de nacionais brasileiros. Posteriormente, abordar-se-ão características da rede, classificando sua estrutura conforme atributos e posicionamentos dos mem - bros dentro dos processos de radicali - zação e da ação terrorista, utilizando para isso um modelo analítico proposto como adequado ao contexto do contra - terrorismo no Brasil.
O grupo Estado Islâmico e radicalização de brasileiros
O frameworkterrorista introduzido pela Al Qaeda ao longo da década de 2000 e início da atual, baseado na dissemina - ção coordenada de sua base ideológica em células (subordinadas a uma lideran - ça central forte)4, com forte uso da pro - paganda virtual, que sustentou o grupo mesmo durante seu progressivo enfra - quecimento naquele período, encontrou no Brasil atores isolados e favoreceu, ainda que de forma incipiente, o início de processos de radicalização de brasi - leiros. Alguns indivíduos, que manifesta - vam pensamento extremista e demons - travam simpatia pelo grupo, utilizavam as redes sociais para atingir seguidores e, possivelmente, radicalizá-los.
Entretanto, a abordagem adotada, com ênfase no domínio da ampla base juris -
prudencial e teológica (surasdo Corão e ahadith da Sunna) que justificaria as
5
ações violentas da Al Qaeda à luz do Islã, restringiu o público no Brasil aos que se ocupavam em se aprofundar na doutrina e difundi-la, tendo, mesmo assim, pouco alcance radial. Esses pou - cos indivíduos da primeira geração de radicais frequentavam pequenas comu - nidades religiosas, comunicavam-se vir - tualmente e encontravam-se em eventos religiosos, mas comumente eram recha - çados pelas comunidades muçulmanas tradicionais, sempre preocupadas em evitar uma imagem na opinião pública que associasse o Islã ao terrorismo. Ha - via no país, portanto, pouco espaço para a formação de uma estrutura celular bra - sileira com capacidade de ação no nível de organização e complexidade dos ata - ques assinados pela Al Qaeda.
Em 2015, as inovações implementadas pelo EI a partir do método de doutrina - ção da Al Qaeda6, que foram determi - nantes para a expansão e capilaridade alcançadas pelo grupo no mundo desde o início de sua formação, encontraram campo fértil em parte dos jovens muçul - manos sunitas no Brasil. Apontar alguns ingredientes do modelo de propagação do EI – e em especial elementos distin - tos do receituário da Al Qaeda, que en - contraram grande receptividade entre os brasileiros convertidos – torna possível
4 Cf. SCHWEITZER; LONDON (2009) e SEDGWICK (2004).
5 Sunna (“hábito”, “modo de agir” em árabe, pl. sunan) é a coleção de ditos, pregações, regis - tros de como o profeta Muhammad agiu em várias situações com que se deparava, base, jun - to comassuras(capítulos) do Corão, de toda a jurisprudência islâmica, transmitida oralmente por décadas ou séculos e registrada por escrito posteriormente sob a forma de ahadith (plural de hadith, “relato”, “narrativa”).
6 Cf. AL-TAMIMI (2004, 2013).
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compreender as razões por trás desse processo7. Destacam-se, entre outros, elementos de propaganda virtual e o esmero em sua produção, estruturação em rede, disseminação do pensamento radical sem o rigor doutrinário funda - mentalista e a mensagem do califado 8
Apontar-se-ão também, por outro lado, características observadas nos perfis desses jovens brasileiros que eventual - mente podem contribuir para o processo de absorção da narrativa extremista. Para isso, o estudo se iniciará com uma rápi - da análise sobre as barreiras e rupturas muitas vezes enfrentadas nas trajetórias de conversão desses jovens. 9
Percebe-se que o processo de conver - são10 dos brasileiros costuma ser difícil, não envolvendo apenas os desafios de inserção na nova religião, mas uma com - plexa readaptação social, psicológica e cultural. Essa percepção é compartilhada
por MARQUES (2010). Os brasileiros convertidos trazem consigo caracterís - ticas próprias da cultura ocidental de tradição cristã. Eles são normalmente originários de famílias católicas ou evan - gélicas e geralmente se veem afastados do convívio familiar após a conversão. Introduzem-se na comunidade muçul - mana, tão estranha às suas formações originais, e com ela passam a conviver com frequência. Esforçam-se para se aproximar de uma realidade cujo extre - mo seria a profundidade das atividades religiosas mescladas às práticas culturais tradicionais das famílias muçulmanas es - trangeiras e de seus descendentes. 11
Já os estrangeiros muçulmanos, mesmo que bem adaptados à cultura brasileira, conservam características de suas ra - ízes, carregadas de uma complexa so - breposição identitária étnica, política e religiosa. Em razão disso, os converti -
7 SILVA (2017, mimeo) analisa perfis de terroristas envolvidos nos principais atentados ocorri - dos nos últimos anos, apontando elementos observados em suas trajetórias de radicalização e características no modo de atuação do Estado Islâmico, que possibilitam melhor compre - ender o fenômeno do terrorismo na atualidade. A abordagem do autor quanto ao cenário internacional norteou a elaboração do conteúdo apresentado ao longo desse capítulo, em que trabalhamos processos de radicalização observados no Brasil.
8 Califado (árabe, khilafah), nesse contexto, se refere ao modelo de organização política, de Estado confessional idealizado no Islã, tendo como referência o reinado dos primeiros quatro califas (árabe, khalifah, “sucessor”) após a morte do profeta Muhammad. O grupo terrorista Estado Islâmico, em sua tentativa de se afirmar como entidade estatal de factoe de legitimar o papel de liderança sobre toda a comunidade islâmica mundial, que pretenderia exercer, chama a si mesmo de califado e a seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, de califa. O termo serviu ao longo da história do Islã, de acordo com DANFORTH (2014), mais como slogan utilizado por grupos isolados em tentativas frustradas de legitimarem-se como liderança política em conflitos localizados.
9 Não há dados precisos que quantifiquem num espaço temporal o crescimento da população de brasileiros convertidos ao Islã nos últimos anos. Todavia, é possível afirmar que é inegá - vel, a partir de informações das principais organizações muçulmanas e do acompanhamento empírico do fenômeno no período, que este apresentou expressivo crescimento nos últimos cinco anos.
10 A conversão para o Islã é chamada pelos seguidores dessa religião de “reversão”. Eles professam que todos nascem muçulmanos, mas as famílias e sociedades em que estão in - seridos pervertem essa inclinação inata e fazem com que sigam outras fés. Ao encontrarem o Islã mais tarde em suas vidas, os convertidos estariam apenas retornandoou revertendo à sua fé original.
11 Cf. MARQUES (2010).
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O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro a partir da Operação Hashtag
dos geralmente se agrupam com outros brasileiros que compartilham a mesma situação. A essas diferenças, que so - brecarregam o processo de adaptação, somam-se as dificuldades étnico-lin - guísticas que dificultam ou retardam a absorção cultural, teórica e prática da religião por parte dos brasileiros.
Nos processos de transição para uma identidade muçulmana observados em grande parte dos indivíduos identifica - dos na rede extremista brasileira alvo deste estudo, os convertidos passaram por uma trajetória de distanciamento familiar, ruptura compelida de práticas da cultura ocidental secular e de parte de seu vínculo pátrio, passando por fa - ses de isolamento social12. Aqueles que não participavam de alguma comunidade física (a maioria deles) – que passaram por experiências isoladas de conversão e cujas práticas religiosas eram fomentadas por pares nas redes sociais – comumen - te reclamavam que sofriam discriminação por parte de familiares ou pessoas de seu convívio. Esses indivíduos passaram por
progressivo processo de isolamento so - cial e imersão no mundo virtual. 13
Nesse meio também foram observados 14
sentimentos de inferioridade, carências relacionadas ao sentimento de pertenci - mento, problemas conjugais, desempre - go e baixas perspectivas laborais. Certa - mente, outros elementos relacionados à história de vida desses potenciais jovens radicais, anteriores ou não ao processo de conversão, muitas vezes difíceis de identificar sem uma análise mais criterio - sa por parte de um psicólogo clínico, so - maram-se a esse processo de adaptação e contribuíram na formação de um perfil suscetível ao discurso radical. Muitos se viam perdidos em meio a essa transição ou não encontravam substitutos para ocupar os vazios deixados pelas ruptu - ras da conversão. A maioria recorreu a substitutos dissonantes: o discurso radi - cal supriu os anseios de superioridade, os líderes jihadistas ocuparam o espaço de carência paternal, a irmandade dos mujahedinsubstituiu a família, o ideal do califado, sua pátria, o jihad, sua causa. 15
12 Cf. BHUI et al. (2012) e KHADER (2016), p. 300.
13 Importante destacar, nesse ponto, o momento político e social vivido no Brasil no período que indiretamente pode ter influenciado o processo de radicalização dos jovens brasileiros. O Brasil vivia um momento de forte mobilização social e experimentava a impressionante capacidade de organização, mobilização e disseminação de protestos pelos jovens nas redes sociais. Eles encontravam na internet o seu campo de batalha inicial em meio aos movimentos contra a corrupção na política brasileira. Os jovens perceberam o seu poder na sociedade por meio de mobilizações organizadas online. É possível apontar esse fato como um processo no inconsciente coletivo juvenil, que contribuiu paralelamente para a ampliação da exposição desses jovens nas redes sociais, no tocante a discussões sobre o EI. Tal hipótese, porém, requer estudo mais profundo, que fugiria ao escopo do presente ensaio.
14 Observados na literatura a respeito de processos de radicalização referenciada neste artigo e depreendidos do conteúdo da denúncia do Ministério Público Federal (MPF), da sentença judicial e de material de interrogatórios e entrevistas com os réus, divulgados no decorrer do processo.
15 Não cabe neste texto discutir os diversos sentidos da palavra jihad(lit. “esforço”). É sabido que o discurso apologético e proselitista do Islã e de suas lideranças busca enfatizar que o vocábulo não tem uma conotação violenta, que faria referência a um “esforço interno” do fiel para combater sua negatividade e ser uma pessoa melhor. Entretanto, é inegável que esse termo foi e é usado na história e na jurisprudência do Islã desde as primeiras décadas da Hégira como uma referência explícita a esforços violentos e militares para proteger e expandir a religião. Há todo um gênero de literatura islâmica clássica (séculos 11 e 12) a que se dá o nome de “Kitabal-Jihad” (Livro do Jihad), que são livros de estratégia puramente militar.
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Thiago A. - Augusto O. - Allan S.
O poder de arregimentação do EI, com base nos fatores acima analisados, tor - nou-se particularmente maior perante o público jovem. Apesar das diferenças em relação ao fenômeno na Europa, os jovens brasileiros radicalizados apre - sentam a semelhança da vulnerabilidade social e etária.
Na Europa16, a radicalização ocorre fre - quentemente em um contexto de ressen - timento pela forma como os imigrantes oriundos de ex-colônias de maioria mu - çulmana são acolhidos e integrados nas antigas metrópoles, muitas vezes ocor - rendo no ambiente prisional, em que essa parcela marginalizada da população é desproporcionalmente representada. No Brasil, diferentemente, a radicaliza - ção alcança indivíduos sem quaisquer laços prévios com o Islã, que veem nele, no califado e na promessa de recompen - sas do martírio, um escape perfeito para suas frustrações familiares e sociais.
Na maioria dos casos observados no Brasil, os convertidos radicais são jovens sem vínculos identitários com o Islã. Eles não pertencem às comunidades muçul - manas brasileiras históricas, formadas pelas famílias de imigrantes de origem árabe que vieram ao Brasil desde o final do século XIX.
Enquanto a Al Qaeda ainda era a prin - cipal fonte de inspiração para radicais pelo mundo, pregadores e dissemi - nadores do ideal combatente atuavam
isoladamente no Brasil, protegidos pela ausência de instrumentos legais que permitissem qualquer tipo de ação re - pressiva ou preventiva – e utilizavam as redes sociais para disseminar os pen - samentos radicais difundidos pelos ca - nais de comunicação extremistas, como a revista Inspire. Esses indivíduos, que buscavam os fundamentos e preceitos do Islã baseados nos complexos discur - sos dos porta-vozes da Al Qaeda – mas que eram vozes isoladas em suas co - munidades, normalmente tachados de terroristas – passaram a ver no EI uma oportunidade até então despercebida.
O EI inova e aprimora a propaganda vi - sual e simplifica a linguagem da Al Qae - da, utilizando grande aparato tecnológi - co e propagação na internet, com forte apelo emocional, alcançando espaço na mente de vários jovens brasileiros. Esses jovens passam, por meio de um simples juramento de lealdade, a bay‘ah, a fa - zer parte de um forte aparato militar e combater por uma causa divina. Agora é a luta pelo reestabelecimento dos pre - ceitos, da tradição do Islã, a Umma, 17
Dawla,18 o califado (khilafah) do século VII, um estado para todos muçulmanos independentemente de suas origens, sob o comando de um sucessor do profeta.
Ao contrário da Al Qaeda em seu auge e outros grupos terroristas tradicionais, o EI não se preocupa em incentivar for - mação de células dirigidas diretamente por um comando central que planeja to -
16 Cf. AZZAM (2007) e MURSHED e PAVAN (2009) para comparar duas visões contrastantes sobre essa questão.
17 Comunidade de fiéis.
18 Estado; manifestação do Islã na esfera política.
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O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro a partir da Operação Hashtag
das as ações em detalhes, mas estimula seus combatentes (todo aquele que fez a bay‘ah) a agirem localmente e de maneira simples, mas efetiva. Atentados recentes na Europa com o uso de facas ou cami - nhões são um exemplo dessa transição no modusoperandi .
Em meados de 2015, tornou-se evi - dente19 uma maior movimentação em grupos nas redes sociais e em algumas comunidades muçulmanas em torno de longos debates sobre a legitimidade da existência e das ações do EI, apontan - do para a formação de um grupo em processo de rápida radicalização. Após um período de agrupamentos e reagru - pamentos físicos e virtuais, com parti - cipação de indivíduos com diferentes graus de instrução, chegou-se, pouco antes dos atentados na França, em 13 de novembro de 2015, a um conjunto de indivíduos que representavam o que se pode chamar de uma “rede extremista brasileira” e cujo marco focal foi a cria - ção de um grupo secreto no Facebook denominado “Defensores da Sharia”. 20
No final de novembro de 2015, pouco após os atentados em Paris, os mais ra - dicalizados saíram ou deixaram de parti - cipar do grupo de discussões Defensores da Sharia e passaram a se comunicar em
aplicativos móveis criptografados. Ao longo dos meses seguintes, outros gru - pos menores foram se formando nesses aplicativos e o nível do discurso radical aumentou progressivamente entre os membros. Os principais grupos passa - ram a tratar, entre outros assuntos, da formação de células para treinamento e preparação física e espiritual em favor do jihad, de recursos e meios de migração para combater na Síria (hijra) e, já próxi - mo das Olimpíadas, da possibilidade de executar um atentado terrorista no Bra - sil. Não eram típicas células terroristas nos moldes da Al Qaeda, mas uma rede de extremistas do EI formado por poten - ciais terroristas brasileiros.
Em julho de 2016, mais de uma dúzia de indivíduos foram presos em quatro etapas operacionais executadas pelo Departamento de Polícia Federal (DPF), acusados de praticarem crimes previs - tos na lei que disciplina o terrorismo, entre eles indivíduos que faziam parte da rede de radicais islâmicos identifica - da no Brasil. Em setembro do mesmo ano, oito indivíduos foram denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) pelos crimes de promoção de organi - zação terrorista e atos preparatórios de terrorismo, entre outros. 21
19 Cf. Denúncia do MPF e sentença judicial.
20 Segundo perícia policial referida na denúncia.
21 Os indivíduos denunciados e, posteriormente, sentenciados foram descritos amplamente na imprensa e por algumas autoridades como “amadores” e como não representando grande ameaça real, uma vez que estavam espalhados pelo território nacional sem estarem reuni - dos fisicamente; não possuíam poder de fogo de fato, nem teriam sido treinados por grupo terrorista estrangeiro. Essa análise revela uma falta de compreensão, à época, da mudança de paradigma representada pela ascensão do EI e de seu modo de recrutar combatentes e pô-los em ação.
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Thiago A. - Augusto O. - Allan S.
Análise e identificação de radicais
É possível, a partir de uma análise cri - teriosa da experiência brasileira, formar alguns conceitos e taxonomias que per - mitam compreender de maneira mais objetiva e didática como têm ocorrido processos de radicalização no País.
Pode-se afirmar que o processo de radi - calização de muçulmanos tem início com a exposição do indivíduo a um ambiente psicossocial que lhe ofereça condições propícias para que venha a ser introdu - zido ao pensamento radical. Essa expo - sição é o primeiro passo de um ciclo que resulta num ponto focal, porém abstrato, que seria o momento em que poder-se - -ia atribuir-lhe o adjetivo de “radical”.
Um indivíduo já radicalizado, ou seja, que completou o que se chama aqui de “ciclo22 de radicalização” pode ou não iniciar outro processo, o “ciclo da ação”, que o leva ao cometimento de fato de uma ação terrorista. Este ciclo pode in - cluir várias etapas, como a absorção do ideal terrorista, a decisão da ação, o pla - nejamento e a preparação do atentado. Ambos os ciclos, de radicalização e da ação, formariam o que aqui se denomi - na, para fins didáticos, “ciclo completo da ação terrorista”. No entanto, fatores subjetivos anteriores ao ciclo do radica - lismo são igualmente ou até mais impor - tantes no estudo desse processo, ou seja, as condições psicossociais do indivíduo, expectativas de futuro, história pregres -
sa, formação educacional, vida familiar, experiências vividas etc.
No caso da rede de extremistas identi - ficada no Brasil, é possível afirmar que a passagem de parte dos membros do grupo do Facebook “Defensores da Sha - ria” para grupos menores em aplicativos móveis, com aumento contínuo na pre - ocupação quanto à segurança23, repre - sentaria a transição de indivíduos que completaram um ciclo de radicalização para o início do ciclo da ação. O marco dessa transição foi observado no final de novembro de 2015, após um período de pouca atividade no grupo do Facebook em razão do impacto causado pelos atentados na França. Esse evento ser - viu como certo “divisor de águas”, que trouxe aos indecisos do grupo, ainda não completamente radicalizados, o questio - namento definitivo sobre o caráter terro - rista da organização EI, fator que levou os mais radicalizados a migrarem para canais de comunicação criptografados, em que passaram a tratar da formação de uma célula extremista.
Os atores relacionados ao ciclo comple - to da ação terrorista podem ser classi - ficados de diversas formas, conforme o papel que desempenham no grupo, seu nível de radicalização e de ação ou qual - quer outra forma de atuação que auxi - lie no planejamento de suas ações. Por exemplo, definir o ambiente de maior atuação do indivíduo radicalizado, seja virtual ou físico, e o papel que desempe -
22 Utilizou-se ao longo do artigo o termo “ciclo” por este ser muito comum na literatura especiali - zada. No entanto, tratam-se de processos e subprocessos complexos, não necessariamente cíclicos ou fechados, mesmo que possa haver elementos de retroalimentação.
23 V. Denúncia do MPF e sentença.
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O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro a partir da Operação Hashtag
nha dentro de um determinado contexto, como “disseminador do pensamento ra - dical” ou “disposto à ação violenta”, é essencial na definição da estratégia ana - lítica e operacional de acompanhamento desses indivíduos.
Para fins de análise dos casos relaciona - dos ao extremismo islâmico no contexto brasileiro, utilizou-se aqui um modelo 24
de classificação que mescla, em camadas ou níveis sobrepostos, vários atributos, como o ambiente de radicalização, a função que determinado ator desempe - nha no grupo, o grau de radicalização do indivíduo radical e a disponibilidade dele à ação. Essa metodologia, apesar de simples, permite trilhar um caminho lógi - co cuja correta análise, desde o enfoque da primeira exposição ao pensamento radical, facilita a identificação de indiví - duos radicalizados nas camadas subse - quentes, até o nível maior da ameaça, ou seja, o indivíduo na iminência de execu - ção de uma ação terrorista. São cinco as camadas: comunidades, doutrinadores, defensores do pensamento radical, radi -
calizados dispostos à ação e os já envol - vidos no ciclo da ação.
Identificação de redes extremistas
Utilizando o modelo de classificação por camadas mencionado anteriormente, é possível analisar como exemplo, de for - ma mais objetiva, parte da rede identi - ficada no Brasil. Antes, porém, importa pontuar que fogem dessa metodologia casos genuínos de agentes isolados, in - divíduos que passam por todo o ciclo de radicalização e cometimento de um atentado sem nenhuma ou com mínima participação de terceiros.25 Tais casos são extremamente difíceis de identificar e requerem métodos variados que envol - vem vários atores na estrutura de enfren - tamento ao terrorismo.
O primeiro nível de análise, pelo qual se inicia a prospecção do indivíduo radical, é a camada referente à comunidade ou grupo em que o extremista possa es - tar inserido. É o ambiente primeiro de exposição do indivíduo ao processo de radicalização. Identificam-se assim am -
24 O modelo empregado no artigo, detalhado em seguida no texto, se trata de um conjunto de características depreendidas empiricamente dos dados constantes no caso em questão, acrescidas de substrato teórico obtido na revisão da literatura, organizados pelos autores em uma taxonomia analítica capaz de auxiliar na compreensão de processos de radicalização observados no País. É um modelo empírico inédito, sujeito a constante atualização.
25 É deliberada a opção de não utilizar o termo “lobos solitários”, amplamente difundido. Ape - sar de alguns autores repudiarem a existência da figura do lobo solitário terrorista, sob o argumento de que nenhum indivíduo chega ao ponto de cometer um atentado terrorista de matiz islâmico de sua inteira e autônoma vontade, sem qualquer ingerência ou participação mesmo que motivacional de terceiros, falta nessa discussão uma uniformidade conceitual na compreensão do termo. Não se trata de comparar tais casos às ações observadas em outros matizes em que o indivíduo atua a partir de uma ideologia adquirida autonomamente e imbu - ído geralmente de distúrbios psicológicos, o que recai em discussões desnecessariamente complexas. Por isso, prefere-se o uso do termo “agente isolado”, entendido como o indivíduo que, sem a participação ativa e direta de terceiros e a partir unicamente de acesso a material doutrinário, considerando todos os fatores subjetivos adjetos ao ciclo de radicalização, pode adquirir a motivação necessária e cumprir todas as etapas de um ciclo completo do atentado, indo inclusive ao encontro do que hoje é amplamente incitado pelos principais grupos terroris - tas islâmicos e tende a aumentar com o fim do califado enquanto proto-Estado.
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bientes na sociedade propícios a um processo de radicalização, sejam comu - nidades religiosas, grupos de discussão virtual, grupos de estudos etc.
Em comunidades islâmicas formais (in - cluídos, nessa camada, ambientes físicos e virtuais), por exemplo, é necessário ini - cialmente compreender a linha doutriná - ria empregada, a escola de pensamento seguida pelos seus principais líderes e sheikhs. Não se trata apenas de iden - tificar pregadores oriundos de escolas wahhabitasou salafitas26, o que por si só não sugere posicionamento extremista; mas de conhecer seus verdadeiros dire - cionamentos doutrinários, muitas vezes sutis e manifestados apenas a um públi - co específico. Sem qualquer pretensão de achar indivíduos radicalizados nesse nível analítico, procura-se aqui identificar as portas que vão dar acesso ao primeiro e complexo corredor de introdução ao pensamento radical.
Essa primeira camada analítica pode ser a menos importante e, por vezes, in - frutífera na detecção de indivíduos ra - dicalizados. Atualmente, as lideranças religiosas podem ter pouca ou nenhuma influência nos processos de radicaliza - ção de seus seguidores, dada a estraté - gia do EI de utilização maciça do poder midiático e da violência como espetácu - lo, propagada indiscriminadamente nas
redes sociais. Há pouca ênfase no emba - samento teológico (embora ele exista), o que permite disseminar a ideologia do combate e atingir os níveis menos ins - truídos das comunidades sunitas, arre - gimentando jihadistas por meio de um simples juramento de fidelidade, inde - pendentemente da chancela de qualquer liderança. Esse processo, porém, tam - bém pode ocorrer sob a leniência e ne - gligência das lideranças religiosas.
Vários fatores inibem a grande maio - ria das autoridades religiosas islâmicas de manifestarem diretamente qualquer pensamento radical. Mesmo os mais ex - tremistas, em público ou para a comu - nidade aberta, se valem constantemen - te do discurso antiterrorista. Podemos confirmar essa observação nos próprios indivíduos da rede extremista brasilei - ra quando concluem, segundo relatado pelo MPF, “que nenhum sheik (líder re - ligioso) que comande uma mesquita ofi - cialmente no Brasil declararia seu apoio expresso ao EI”. 27
A propagação do pensamento radical em rede, que atinge indiscriminadamente amplo público de pretendentes à radicali - zação, mas sem estruturação clara, pode gerar, de certa forma, um obstáculo ou atraso no ciclo de cometimento do aten - tado, justamente pela insegurança deri - vada da ausência de um líder religioso.
26 Aqui, e em boa parte da literatura, salafitae wahhabitasão tratados como sinônimos, para se referir a um movimento reformista ultra-conservador dentro do Islã sunita. Embora tenham origens distintas, por razões históricas e econômicas eles, na prática, se fundem a partir da década de 1960, em especial no que se refere a sua manifestação no Ocidente ou na rela - ção de países árabes ou muçulmanos com os países ocidentais. Isso ocorre, principalmente, devido ao poder econômico da Arábia Saudita e sua política continuada de financiar centros islâmicos ao redor do mundo, além da formação acadêmica e religiosa de suas lideranças.
27 Denúncia do MPF, p. 49.
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O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro a partir da Operação Hashtag
Isso é o que, de fato, se pôde verificar nas amplas discussões dentro dos gru - pos fechados da rede identificada no
reconhece como líderes tácitos, em rela - ção ao qual está disposto a submeter-se declaradamente. Essas pretensas autori -
Brasil.28 Em determinado momento, dades ou líderes religiosos, de fato, já há
membros do grupo sugerem nomes, entre os indivíduos reconhecidos por possuírem mais conhecimento do Islã de linha radical, para desempenharem o papel de possíveis líderes religiosos da célula.29 Alguns, inclusive, chegaram a ser convidados para serem “imã” do grupo. Nesse sentido, pode-se especu - lar que muitos desses indivíduos, pela ausência de uma liderança religiosa que chancelasse suas ações, permaneceram no estágio de transição entre os ciclos de radicalização e da ação até a ope - ração policial que interrompeu as ativi - dades do grupo. Essa parece ser uma situação peculiar ao caso brasileiro, em função do baixo conhecimento religioso e grau de radicalização dos membros da rede, que não conseguiram alcançar um estágio de organização física e logística, dentro do ciclo da ação, necessário para um processo estruturado da ação, como observado em diversos casos de atenta - dos perpetrados na Europa por redes de imigrantes ou descendentes de imigran - tes com vínculo direto às regiões mais conflituosas e maior comprometimento com a causa terrorista.
Após membros da rede em análise terem excluído a possibilidade de ter um sheikh como seu líder, partiram para a seleção de alguns nomes que julgavam adequa - dos para serem seu imã. O grupo buscou um único nome entre os indivíduos que
muito exerciam forte influência no pro - cesso de radicalização de seus liderados desde o início do ciclo de radicalização, independentemente de ser ou não um processo consciente. Isso leva à próxima camada analítica na prospecção de indi - víduos radicalizados, os doutrinadores.
Próximas ou não aos líderes religiosos tratados na primeira camada, é possível identificar lideranças religiosas de facto em grupos de indivíduos em processo de radicalização. Esses geralmente não pos - suiriam interesse de se engajar pessoal - mente em uma ação extremista, mas são indivíduos já radicalizados que possuem conhecimento religioso mais consisten - te, têm forte capacidade de persuasão doutrinária e desempenham, em grupos, o papel de difusores do pensamento ra - dical. É o que se observa, no exemplo estudado, quando os jovens da rede bus - cam líderes, apontando pessoas entre os que respeitam como conhecedores dos fundamentos do Islã.30 Ao redor dessas lideranças religiosas tácitas, muitas ve - zes aninham-se indivíduos inexperientes, mas com perfis adequados ao processo positivo de radicalização e, por isso, essa é uma das principais camadas no proces - so de prospecção de radicais.
Esses doutrinadores desempenham im - portante papel no ciclo de radicalização, pelo seu poder de persuasão, e manifes -
28 Denúncia do MPF pp. 41-52.
29 Denúncia do MPF pp. 49 e 66-71.
30 Denúncia do MPF, pp. 49 e 66-71.
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tam diretamente posicionamentos radi - cais, além de não estarem limitados às restrições políticas observadas nas lide - ranças religiosas oficiais identificadas na camada anterior. Como tratado anterior - mente, alguns indivíduos já radicalizados e formados pela doutrina pregada pela Al Qaeda se destacavam isoladamente nas comunidades físicas e redes sociais e passaram, a partir de 2015, com o EI, a ter um papel relevante na formação da rede extremista.
No caso brasileiro, além da atuação da Inteligência, com foco nesse nível de doutrinação, e dependendo da forma do discurso empregado, tornou-se recente - mente possível o início de uma investiga - ção criminal pela polícia judiciária com - petente, com base no crime tipificado pelo art. 3º. da Lei n.º 13.260/2016, o crime de promoção de organização terrorista. Entretanto, a aplicação desse tipo penal, cujo núcleo consiste no ver - bo “promover”, denota amplo campo conceitual, requerendo, por essa razão, mais esclarecimento, a ser alcançado por decisões judiciais futuras.31 O art. 4º da lei, originalmente, previa o crime de apologia ao terrorismo – poder-se-ia argumentar mais adequado para a pre - sente hipótese –, porém, o dispositivo foi vetado pela Presidente da República, Dilma Rousseff.
Nos próximos dois níveis, defensores do pensamento radical e radicalizados dis - postos à ação, encontram-se os indiví - duos radicalizados, mas que ainda não
partiram efetivamente para alguma etapa executiva no ciclo de cometimento de um atentado. O que difere as duas camadas é unicamente a disposição do indivíduo à ação, fator essencial na definição da estratégia e da prioridade de seu acom - panhamento. São pessoas que apoiam organizações e defendem o cometimento de ações terroristas. Na rede em estu - do, os indivíduos dessas camadas repre - sentavam o maior número e contribuíam consideravelmente para a manutenção do discurso extremista nos grupos, radi - calizando e incitando outros envolvidos.
A atividade analítica nessas camadas re - quer acompanhamento contínuo, avalia - ção psicológica sistemática dos indivídu - os e obtenção de dados que possibilitem a compreensão precisa da disposição dos indivíduos de partirem para a ação. Também se faz imperativo uma boa arti - culação entre os órgãos de prevenção e investigação da ameaça terrorista.
A camada mais crítica refere-se aos in - divíduos que iniciaram alguma atividade relacionada ao planejamento e prepara - ção para a ação terrorista. É o caso de um dos denunciados, considerado líder intelectual do principal grupo identifica - do na rede, que foi condenado pelo cri - me de atos preparatórios de terrorismo (art. 5º da Lei n.º 13.260/2016).
Nessa camada ocorrem as etapas finais do ciclo da ação, período em que as ações de Inteligência dão lugar primor - dialmente aos procedimentos investi -
31 No entanto, a sentença judicial a que esse ensaio faz referência já avançou muito nesse sentido. O juiz federal dedicou grande parte de sua fundamentação a um estudo detalhado do significado do verbo “promover” e, por fim, o interpretou de maneira ampla e profunda. Tal decisão deverá ter influência em casos subsequentes de aplicação da Lei 13.260/2016.
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O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro a partir da Operação Hashtag
gativos de obtenção de provas que vão fundamentar imputações aos indivíduos envolvidos nos principais crimes tipi - ficados na lei que regula o terrorismo. Esse processo de transição das ações de Inteligência e policiais pode ser bastan - te delicado e depende sobremaneira da estrutura orgânica executiva e do orde - namento jurídico de cada país. Geral - mente, os processos de Inteligência e investigativo nessas camadas vão recair numa ação ostensiva repressiva ou ação policial controlada. No caso de iminente ação terrorista ou atentado em curso, no ordenamento brasileiro, passam a atuar os batalhões especializados das forças armadas especialmente treinados para essas situações.
Conclusão
Sem deixar de lado o que já se conhece a respeito da radicalização islâmica em regiões do mundo que a confrontam há mais tempo do que o Brasil, e a alte - ração da dinâmica do terrorismo inter - nacional representada pela ascensão do
Estado Islâmico como maior ameaça, em substituição ao modelo anterior da Al Qaeda, é necessário conhecer e com - preender como isso tem ocorrido no contexto brasileiro.
A desmobilização de uma rede extre - mista composta por cidadãos brasileiros, trazida a público com a divulgação da Operação Hashtag e dos inquéritos, de - núncias e processos judiciais subsequen - tes – experiência piloto de aplicação da Lei nº 13.260/2016, que disciplina o combate ao terrorismo no País – forne - ce subsídios para que se elaborem arca - bouços analíticos que permitam vislum - brar os processos que concorrem para a construção da ameaça, em especial no que se refere à dinâmica de radicaliza - ção dos indivíduos envolvidos, desde o encontro com a ideologia violenta até a disposição e emprego efetivo da força em atentados terroristas.
A taxonomia do processo de radicalização apresentada nesse artigo representa uma contribuição para o debate a respeito.
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ESTUDO DOS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA:
UMA ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA COMPARADA
Roberto Numeriano *
Resumo
Oobjetivodopresenteartigoédemonstrarqueométodocomparadoconfigura-seuma das maisrobustasestratégiasdeanálisedaevoluçãodosserviçosdeInteligência,umdos objetos maisenigmáticosnaestruturadosEstados.Nospaísessobumademocraciaconsolidada ou aindaincipiente,taisserviços,comoaparatospolítico-institucionaismuitasvezesfechados à fiscalizaçãoecontrole(accountability),podemsermelhoranalisadospelométodocomparati - vista.Enigmasinstitucionaisounão,asagênciasdeInteligência(bemcomoossistemasque elas conformameintegram)sãosempreoreflexodeescolhaseagendasdeelitesestatais.Para além dacondiçãodeinstituiçõestécnicasnaestruturadeEstado,taisórgãospossuemum ethos políticoqueafetasuasatividadeseinteressescomplexos,sobretudonosprocessosde mudança políticaesocial.Aabordagemcomparadaéuminstrumentoeficazparaapreenderessanatu - rezapolítica,aspossibilidadesestratégicasdosseusatoreseoslimites político-institucionais dessasagências,asquais,muitasvezes,operamnumespaçoestatal cinzento.
Palavras-chave: ServiçodeInteligência;Marcoteórico;Método comparado.
Introdução
Ométodo comparado constitui-se como uma das mais adequadas
estratégias de análise no estudo da evo - lução dos serviços de Inteligência, uma das instituições mais enigmáticas na es - trutura dos órgãos de Estado. Essencial - mente, pretendemos demonstrar que a abordagem comparada (com o aporte do vasto campo de referenciais teóricos em Ciência Política) é um instrumento eficaz para captar a natureza desse movimento
evolucionário e desvelar o sentido dos interesses das agências nos processos de mudança político-institucionais. 1
Nos países sob uma democracia conso - lidada ou incipiente, tais serviços, como aparatos político-institucionais muitas vezes fechados à fiscalização e contro - le, podem ser melhor apreendidos pelo método comparativista. Seu ethos ins - titucional fechado talvez explique por
que entre os thinktanks anglo-saxônicos
* Roberto Numeriano, graduado em Comunicação Social, mestrado, doutorado e pós-doutorado em Ciência Política; também é professor, jornalista e escritor, tendo publicado doze livros, dos quais quatro romances. É Oficial de Inteligência da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
1 Este trabalho é um capítulo inédito da minha tese de doutoramento: NUMERIANO, Roberto. Serviçossecretos:asobrevivênciadoslegadosautoritários. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010, 395 p.
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Roberto Numeriano
(com uma já extensa reflexão teórica em Intelligence studies) e os demais gru - pos de pesquisa acadêmicos do mundo ainda seja fraca a produção de estudos comparados. Defendemos o método porque ele pode amenizar essa dificul - dade, propiciando estudos que apon - tem (sob o aporte dialético de várias teorias) as intersecções e variações de fenômenos político-institucionais relati - vos aos serviços, os quais muitas vezes negligenciados no estudo da evolução dessas instituições nas democracias ro - bustas ou frágeis.
No caso de países de frágil democracia, o fato de não se deixarem apreender ime - diatamente pode derivar, por exemplo, de legados e clivagens políticas que confor - mam suas estruturas e consubstanciam suas concepções doutrinárias – sejam estas vistas como técnica fundamentada em princípios, padrões e normas (a dou - trina perse) ou como uma política de Estado (fundamentada em diretrizes de governo para gerir a segurança, mas nem por isso infensa, como qualquer políti - ca, a escolhas também ideologicamente condicionadas). Nas democracias conso - lidadas, o fato de os serviços secretos já estarem politicamente instituídos e orga - nicamente estruturados como um poder de Estado (Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo) não significa que as suas agendas político-institucionais sejam menos reativas aos processos de mudan - ça política. Sem dúvida, a onipresença (e até, em certos casos, a onipotência polí - tica) de suas elites e demandas de poder sempre se fazem presentes, direta e indi - retamente, no direcionamento e debate das diretrizes de Inteligência.
Em um caso e outro, os serviços de In - teligência são instituições cujos ethos políticos inerentes implicam que as suas elites orgânicas, ao mesmo tempo em que são demandadas nas atividades de Segurança e Defesa nacionais, parale - lamente tentem influenciar as agendas dessas duas áreas estratégicas, conforme seus interesses internos.
Do método comparativo
Nos estudos de caso sobre a evolução de agências, sob determinados limites de tempo, lugar e contexto político, um dos métodos teórico-metodológicos adequa - dos para analisar os serviços de Inteligên - cia é o comparativo. O perfil institucional de uma agência de Inteligência, antes e depois de uma guerra civil ou entre es - tados, ou antes e depois de transições políticas, pode ser comparável numa perspectiva intra e interinstitucional.
Os estudos comparativos entre serviços de Inteligência são um campo ainda in - cipientes na Ciência Política ibero-sul - -americana. Qualquer pesquisa prelimi - nar vai identificar poucas obras sobre o funcionamento, características insti - tucionais, história e enquadramento le - gislativo dos órgãos de Inteligência do Brasil, Argentina, Peru, México, Chile, Espanha, Portugal e os demais países de língua portuguesa. Os poucos textos existentes são em geral descritivos, em perspectiva histórica ou propriamente política, mas restritos a cada serviço. Nesses estudos, a área de Inteligência é um problema político menos em função da doutrina, missão, objetivos e nature - za institucional dos seus órgãos do que em função de como se estrutura organi -
22 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017
Estudo dos serviços de Inteligência:
uma abordagem teórico-metodológica comparada
camente na superestrutura do poder de Estado. Reduz-se o estatuto político da atividade nos termos de uma “burocra - cia técnica”, a despeito de ela operar o poder invisível. 2
O método comparativo também é ade - quado ao estudo das transições nos ser - viços, porque abre um campo de análise mais heterogêneo das realidades, pa - drões, estruturas e perfis institucionais de cada órgão, na perspectiva de seus contrastes internos e em face de sua in - ter-relação com outros serviços de Inte - ligência e demais atores estatais.
A política comparada serve para explicar as diferenças e as similaridades de um mesmo fenômeno, qualquer que seja o foco do pesquisador (PETERS, 1998). Segundo Durkheim, a comparação é um método fundamental, porque “(...) quan - do a produção dos fatos não está ao nos - so alcance e só podemos confrontá-los tal como se produziram espontaneamen - te, o método utilizado é o da experimen - tação indireta ou método comparativo” (DURKHEIM, 1990). Em Ciência Políti - ca, a abordagem comparativa serve para estudar os países e seus sistemas e regi - mes de governo, constituições, parlamen - tos etc. O Estado e suas instituições são os objetos centrais da perspectiva com - parada. De acordo com Duverger, esse método pode ser empregado estudando e comparando, por meio de uma mesma técnica, fenômenos independentes mas
semelhantes; ou pelo estudo e compara - ção, por meio de técnicas diferentes, das manifestações de um mesmo fenômeno (DUVERGER, 1976).
Para Landmann, a comparação de países centra-se hoje em quatro principais ver - tentes, todas co-existindo e se reforçan - do nos estudos comparados sistemáti - cos (LANDMANN, 2003). A ênfase em um delas dependerá, é claro, das aspira - ções do pesquisador. A primeira verten - te é a Contextualdescription (Descrição contextual), que permite aos cientistas políticos conhecerem como são os ou - tros países. O segundo enfoque é o da Classification (Classificação), que torna o mundo da política menos complexo a partir da coleção de dados empíricos organizados e classificados. Já a função da comparação das Hypothesis-testing (hipóteses-provas) propicia a eliminação de explicações concorrentes sobre da - dos eventos, atores, estruturas etc. Fi - nalmente, a comparação entre países e a generalização que dela resulta permite a Prediction (predição) sobre prováveis resultados em outros países não incluí - dos na comparação original, ou resulta - dos futuros, dada a presença de certos fatores antecedentes. 3
Para comparar os serviços de Inteligên - cia pode-se trabalhar com o método qualitativo, que busca identificar e com - preender os atributos, características e traços dos objetos investigados. Esse
2 É Bobbio quem diz: “Não se pode combater o poder invisível senão com um poder igualmente invisível e contrário, os espiões dos outros senão com os espiões próprios, os serviços se - cretos dos outros Estados senão com os serviços secretos do próprio Estado”. BOBBIO, Nor - berto. TeoriaGeraldaPolítica–AFilosofiaPolíticaeasLiçõesdosClássicos. (Trad. Daniela Beccaccia Versiani). RJ: Campus, 2000, p. 412.
3 Idem, ibidem .
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Roberto Numeriano
método requer necessariamente o foco da pesquisa sobre um pequeno número de países.4 Em política comparada, os três tipos de método qualitativo são: a) comparação macro-histórica, com seus três subtipos; b) entrevistas em profundi - dade; e c) observação participante.
Segundo Peters, existem cinco tipos de estudos comparados, a saber: a) descri - ção da política emumdado país, qualquer que seja este; b) análise de processos e instituições similares em um número li - mitado de países, selecionados por ra - zões analíticas: c) estudo para desenvol - ver tipologias ou outras formas de planos de classificação para países ou unidades subnacionais, usando as tipologias para comparar grupos de países e revelar algo sobre a política interna de cada sistema político; d) análise estatística ou descri - tiva de dados de um conjunto de países, normalmente selecionados por motivos geográficos ou graus de desenvolvimen - to (…); e e) análise estatística de todos os países do mundo com o fim de revelar padrões e/ou testar a relação entre um conjunto de sistemas políticos. 5
Nos estudos comparativos, o método analógico é um dos recursos mais em - pregados para a investigação das institui - ções estatais. O uso da analogia tem sido mais aplicado no estudo das relações in - ternacionais, mas a sua base lógica serve igualmente para a análise política com - parada.6 Uma das técnicas desse método é a observação indireta documental, so -
bretudo na perspectiva histórica – quan - do não é possível a observação direta do fenômeno e o pesquisador lança mão do estudo de fontes como livros, jornais, re - vistas e entrevistas, para se acercar do seu objeto (FRIEDE, 2002).
A minha definição de método compara - tivo segue a formulação de Ragin, se - gundo a qual esse método distingue-se pela utilização das características das unidades macrossociais como fatores explicativos dos fenômenos políticos e sociais (RAGIN, 1989). Se o centro de gravidade teórico das ciências sociais reside na comparação de objetos e seus respectivos fenômenos, no caso especí - fico da Ciência Política, a comparação – seja a partir de estudos de caso ou da estratégia multinível – é o método fundamental para o cientista explicar a realidade e ao mesmo tempo se interro - gar sobre o seu próprio trabalho, numa perspectiva epistemológica e heurística. Com efeito, segundo Bonfils-Mabilon e Étienne (1998, p. 28),
A ciência política procura compreender como é que os seres humanos podem criar representações de instituições aparentemente permanentes quando se sabem mortais e condenados a um pro - cesso biológico descontínuo. Portanto, ela analisa sistemas políticos globais. Para este efeito, estuda o conjunto de normas, dos mecanismos, das institui - ções e das crenças que lhe servem de base; mas, também, o conjunto de pro - cessos que atribuem autoridade, que permitem regular os conflitos que ame - açam a coesão social.
4 Idem, p. 19.
5 PETERS, B. Guy, op.cit., p. 10 (livre tradução).
6 Idem, p. 73 (livre tradução).
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Estudo dos serviços de Inteligência:
uma abordagem teórico-metodológica comparada
Conforme registra Johnson, o estudo de caso é uma pesquisa que a) investiga um fenômeno contemporâneo dentro de um dado contexto; quando b) as fronteiras entre um fenômeno e o contexto em que ocorre não são claramente evidentes; e na qual c) múltiplas fontes de evidência são usadas (JOHNSON, JOSLYN e REY - NOLDS, 2001, p. 43). Um estudo de caso pode ser usado para explorar, des - crever ou explicar eventos. É importan - te, por exemplo, descrever e explicar as relações de causa e efeito dos eventos institucionais como fenômenos políticos perse. Em termos descritivos, porque é fundamental descobrir e descrever as características dos perfis institucionais dos serviços de Inteligência face ao re - gime político no qual foram instituciona - lizados. Em termos explicativos, porque é necessário saber como e por que tais características se impõem no processo de mudança política nos países que atra - vessam transições políticas radicais (com guerra civil, por exemplo) ou pacíficas.
Os casos são uma das cinco categorias da análise comparativa, ao lado das uni - dades e níveis de análise (os quais po - dem ser do tipo individual ou sistêmico), as variáveis e as observações.7 Conforme Ragin, os países podem ser considerados como totalidades na estratégia focada na categoria dos casos, o que a torna in - dicada para o estudo das causas múlti - plas de tipo conjuntural.8 As análises, baseadas nas relações de causa e efei -
to, devem levar em conta a conjuntura em que o fenômeno se verifica, mas os seus nexos causais não devem ser con - cebidos probabilisticamente.9 A estraté - gia com base nos casos é indicada so - bretudo para a comparação de poucos casos, embora, como alerta Ragin, essa limitação condicione a generalização das conclusões obtidas.10 Um meio de dimi - nuir essa limitação da estratégia focada nos casos é combinar a análise do fenô - meno com a estratégia de pesquisa cen - trada nas variáveis. Em outras palavras, é preciso combinar a dimensão empírica da primeira com a dimensão teórica da segunda. As variáveis, nessa perspectiva, são os Estados e, dentro deles, a cau - sa de um fenômeno político é entendida como um elemento estrutural macrosso - cial. Se, na pesquisa centrada nos casos, a partir da teoria nós podemos explicar / interpretar um dado fenômeno político - -institucional, na pesquisa focada nas va - riáveis, nós podemos testar as hipóteses derivadas do marco teórico. Trata-se, com efeito, de explorar o jogo dialético entre generalização (típica da estraté - gia das variáveis) e complexidade (típica da estratégia dos casos). Numa análise comparada de dois ou mais serviços de Inteligência, pode ser necessário, por exemplo, enquadrar a pesquisa em um nível de análise macropolítico, dado que o foco recai sobre instituições caracteri - zadas como estruturas de poder coerci - tivas no aparelho de Estado.
7 LANDMANN, Todd, op.cit., pp. 17-19.
8 RAGIN, Charles C., op.cit., pp. 31-52.
9 Idem, ibidem. Isto implica compreender que uma mesma causa, relativamente ao tipo de con - texto em que ocorre, pode provocar efeitos diferentes.
10 Idem, pp. 49-50.
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Roberto Numeriano
Dos referenciais teóricos
Nos regimes democráticos, os serviços de Inteligência tendem a ser instituições complexas e tensionadas pelas demandas dos governos e policymakers. A comple - xidade é um efeito orgânico, dado que as agências são subconjuntos de um sis - tema ou comunidade de Inteligência no qual os níveis analítico e operacional da atividade são demandados continuamen - te em um sentido vertical e horizontal. A tensão é um efeito do jogo intrainsti - tucional (entre grupos orgânica e ideo - logicamente antagônicos na estrutura de poder das agências) e interinstitucional (entre as elites políticas que tendem a formatar/controlar a Inteligência confor - me suas políticas de poder pela hegemo - nia no aparelho de Estado).
O estudo da natureza complexa dos serviços e a análise do jogo de poder interno e externo à instituição implicam o uso de marcos teóricos que possam contemplar o objeto e seus atores na di - versidade dos fenômenos que os envol - vem. Daí a minha simpatia metodológi - ca por uma abordagem teórica eclética. Essa opção poderia sinalizar, na visão de um juízo mais severo, uma saída “fácil”, no sentido de que pouparia ao estudio - so um esforço concentrado no eixo de um referencial único. Na prática, essa opção eclética exige do pesquisador um maior cuidado e requer um esforço ain - da mais concentrado dentro dos marcos teóricos escolhidos.
Os estudos comparativistas ibero-sul - -americanos na área de Inteligência são embrionários. Inexiste uma fortuna críti - ca comparada e sobretudo uma reflexão
teórica e metodológica que possam ba - lizar os estudos pioneiros. A incipiência e insipiência dos estudos de Inteligência da vertente ibérica e sul-americana re - querem do investigador acercar-se de referenciais teóricos que possam abarcar as especificidades dos órgãos / sistemas de Inteligência instituídos sob condições políticas diferentes face à matriz clássi - ca anglo-saxônica. São alguns deles: a) Institucional; b) Teoria das Elites; e c) Dialético. No marco teórico Institucio - nal, é possível trabalhar, por exemplo, com os conceitos de Ação e Estrutura, dentro da vertente do institucionalismo histórico. No marco Elites, pode-se usar as categorias Elite Hierárquica Militar, Militar Não-Hierárquica e Civil. E no re - ferencial teórico Dialético, pode-se tra - balhar com o conceito de Hegemonia, em sua acepção gramsciana.
Em termos conceituais, considero a ati - vidade de Inteligência uma estratégia de elites de Estado constituída pelo trabalho de coleta e análise de dados sensíveis e pela disseminação deles para uma rede de atores e decisores, sob a forma de conhecimentos relativos às questões de segurança e defesa do Estado e da socie - dade. Já o conceito clássico e genérico da Teoria das Elites afirma que “em toda a sociedade, existe, sempre e apenas, uma minoria que, por várias formas, é deten - tora do poder, em contraposição a uma maioria que dele está privada”. (BOB - BIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1986, p. 385). Mais estritamente, segundo o filósofo italiano (BOBBIO, 1986):
(...) uma vez que, em todas as formas de poder (entre aquelas que, socialmente ou estrategicamente, são mais importantes estão opodereconômico,opoderide -
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uma abordagem teórico-metodológica comparada
ológicoeopoderpolítico), a teoria das Elites nasceu e se desenvolveu por uma especial relação com o estudo das Elites políticas, ela pode ser redefinida como a teoriasegundoaqual,emcadasocieda - de,opoderpolíticopertencesempre a umrestritocírculodepessoas:o poder detomar edeimpor decisões válidas paratodososmembrosdogrupo, mes - mo que tenha de recorrer à força, em última instância.
Mas de quais elites de Estado estou fa - lando? Linz e Stepan, ao discorrerem so - bre a forma das elites durante a transição e consolidação democrática, discriminam os seguintes tipos de elites estatais: a) hierarquia militar; b) militares não-hierar - quizados; c) elite civil; e d) a de catego - ria distinta das elites sultanísticas (LINZ e STEPAN, 1999). Para qualquer estudo sobre a criação e evolução de órgãos de Inteligência, será sempre necessário levar em conta essa tipologia, dado que, nos processos de mudança política, o perfil institucional das agências é desenhado mediante as escolhas influenciadas pelos legados políticos incidentes nas relações civis-militares. Nestas relações, as elites civil, militar-hierárquica e militar não - -hierárquica são um fator decisivo na dia - lética da clivagem x ruptura que permeia a construção dos serviços e sistemas de Inteligência. A elite hierárquica militar nos regimes não-democráticos possui, iniciada uma transição, a capacidade de impor a um governo eleito “reservas de domínio” ou prerrogativas não demo - cráticas que podem limitar a consolida - ção democrática.11 Segundo os autores (LINZ e STEPAN, 1999, p. 91),
(…) nos casos em que os militares re - lativamente coesos e submetidos a uma liderança hierárquica acabaram de deixar o exercício direto do poder, as complexas e dialéticas tarefas de criação do poder democrático, bem como da redução dos domínios de prerrogativas não-democrá - ticas mantidos pelos militares, terão de se converter em duas das principais tarefas a serem enfrentadas pelos novos líderes democráticos.
Assim, em termos teóricos e práticos, “(…) quanto mais direta for a ingerência cotidiana da hierarquia militar no Estado e em sua própria organização, anterior - mente à transição, mais patente será a questão de como a nova democracia lida - rá com os militares, para o bom desem - penho da tarefa de consolidação demo - crática”.12 Os militares não-hierárquicos são a elite que domina o regime autori - tário, mas não como instituição castren - se. No papel de militares como governo, essa elite pode representar um obstáculo de menor gravidade na transição e con - solidação democráticas, dadas algumas características do regime.13 Aqui, em tese, a elite não-hierárquica militar nego - ciaria com os civis leis e agendas de re - forma que propiciariam uma progressiva transferência do poder. Os regimes auto - ritários controlados por civis têm (poten - cialmente) mais capacidade institucional de, iniciada uma transição democrática, criar e consolidar um regime dentro de um Estado de Direito porque “os líde - res civis, em geral, são mais motivados a tomar iniciativas e são mais capazes de negociar pactos complexos visando às
11 Idem, pp. 90-91.
12 Idem, p. 90.
13 Idem, p. 91.
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reformas do que os militares e, frequen - temente, mantêm vínculos mais estreitos com a sociedade do que os militares ou os líderes sultanísticos paramilitares”. 14
Essas três elites de Estado podem ser consideradas como categorias estraté - gicas, porque suas agendas na transição e consolidação democráticas afetam os serviços de Inteligência e ao mesmo tempo são afetadas pelos legados polí - ticos e/ou autoritários desses órgãos. É preciso ainda se prevenir em face de um enfoque redutor da análise que preten - da situar apenas estruturalmente a ins - titucionalização da Inteligência nos pro - cessos de mudança política. Também se deve evitar a reificação do ator na esco - lha de um dado desenho institucional da Inteligência, como se a ação desse fos - se condição necessária e suficiente para preencher o vácuo institucional comum aos espaços de poder, nos quais forças em conflito lutam para criar e consolidar uma hegemonia.
Em sua acepção geral, o conceito de he - gemonia (do grego egemoníaou direção suprema) aplica-se ao sistema interna - cional e às relações entre os Estados. Na linha teórica gramsciana (mas não ape - nas nos escritos da vertente marxiana), a hegemonia refere-se às relações entre as classes sociais e entre os partidos políti - cos, e ainda às instituições e aos apare - lhos públicos e privados. Beligni observa que, nessa acepção mais restrita, há dois significados dominantes para o uso do termo. Um deles tende a equiparar ou aproximar hegemonia de domínio, “(...)
acentuando mais o aspecto coativo que persuasivo, a força mais que a direção, a submissão de quem suporta a hegemo - nia mais que a legitimação e o consenso, a dimensão política mais que a cultural, intelectual e moral” (BELIGNI, 1986). O outro significado identifica hegemonia como “capacidade de direção intelectu - al e moral, em virtude da qual a classe dominante, ou aspirante ao domínio, consegue ser aceita como guia legítimo, constitui-se em classe dirigente e obtém o consenso ou a passividade da maioria da população diante das metas impos - tas à vida social e política de um país”. 15
Esta é a acepção da teoria da hegemonia numa vertente gramsciana.
Os atores, quando tentam formatar um desenho institucional consentâneo com os seus interesses, também estão bus - cando afirmar uma hegemonia que reflita um dado consenso político-institucional para um aparelho de Estado, no caso, um serviço de Inteligência. O conceito de hegemonia pode, assim, ajudar a explicar algumas dificuldades políticas das elites civis em instituir, mesmo nas democra - cias, um consenso institucional relativo aos órgãos de Inteligência. No limite, o caráter coercitivo de um serviço secreto (coerção suigeneris, diríamos, pois os serviços civis não têm poder de polícia) e a sua natureza política na provisão da segurança e defesa do Estado – o que implica uma necessidade orgânica de se legitimar e ser, pela sociedade, legitima - do –, parece transformar os órgãos em um cabodeguerra institucional.
14 Idem, p. 92.
15 Idem .
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uma abordagem teórico-metodológica comparada
Oreferencial dialético adequa-se ao estu - do desse combate pela hegemonia, por - que pode apreender o sentido e explicar as clivagens político-institucionais das agências, a par dos legados da transição que afetam as escolhas e ações das elites na discussão/formatação do modelo ins - titucional dos órgãos de Inteligência. Ao mesmo tempo, parece-me que essas cli - vagens são símilesde contradições entre ação e estrutura, típicas de instituições cujo desenho ainda é influenciado pelos legados políticos e/ou autoritários que instituíram órgãos de Inteligência dentro de um paradigma repressivo.
Para analisar esse conflito (em alguns casos já como efeito de visões politica - mente antagônicas em torno do discurso doutrinário institucional), o qual se des - vela entree naselites políticas/orgânicas do Estado, o método dialético pode con - templar criticamente a relação doutrina deInteligência–ideologiadeelites de Estado. A dialética que permeia tal rela - ção configura-se como um jogo contra - ditório na teoria e na prática dos órgãos de Inteligência. Na qualidade de institui - ções localizadas numa dada estrutura de poder, tais órgãos podem, numa verten - te marxiana, ser analisados como insti - tuições de caráter político-ideológico e superestrutural (BOTTOMORE, 1988). Tomando a teoria da hegemonia como um eixo dentro do referencial dialético, é possível, por exemplo, apreender o sentido de eventuais contradições como expressão ideológica (fundada em uma ideia doutrinária consagrada pela Inte - ligência) e política (condicionada pelo jogo das elites face aos desafios de cada época histórica).
A luta intrainstitucional (entre grupos or - gânica e ideologicamente antagônicos na estrutura de poder das agências) e inte - rinstitucional (entre os poderes Executi - vo e Legislativo, por exemplo) dá-se sob uma dialética que pode explicar as dispu - tas pelos espaços de poder estratégicos que, em um nível micropolítico, tendem a refletir as opções macropolíticas das eli - tes na conformação de uma hegemonia. Daí a tensão típica dos órgãos e comuni - dade de Inteligência quando a transição é deflagrada: de arenas relativamente au - tônomas numa ordem autoritária, inicia - da a transição, (re)assumem sua natureza política inata e se transformam em arenas conflagradas, porque seus integrantes in - ternalizam institucionalmente a luta pela hegemonia como “adversários” ou “alia - dos” do processo de mudança.
Ora, o conflito de poder que permeia os órgãos e a atividade de Inteligência supõe um conflito civil-militar naqueles regimes e condições políticas da transi - ção originárias de uma ordem autoritária. Parece-me uma conditio sine qua non que esse conflito somente possa aflorar pela resistência de legados que opõem, mesmo dentro de uma dada elite, visões distintas e/ou opostas sobre opções e escolhas dos atores políticos e institucio - nais. Nessa dialética, a principal contra - dição dos que resistem à democratização da área de Inteligência está em pretender reformar apenas tecnicamentea burocra - cia e as estruturas orgânicas de Inteligên - cia (meio de manter espaços de poder político-institucional), sem enxergar que é preciso antes reformá-la politicamente (o que só é possível se os atores internos e externos cooperarem a partir da com - preensão das vantagens mútuas).
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Nas transições políticas, e até na paxde - mocrática, uma das características cen - trais da crise de identidade dos órgãos de Inteligência é tentar construir uma imagem entre categorias antitéticas: co - erção e consenso/legitimidade. A elite no poder (governo) embala a criança com o canto das prerrogativas coercitivas (até mesmo cevando-a nos legados autoritá - rios) enquanto a elite na oposição (parla - mento) levanta-se em protestos retóricos que tangenciam as causas da crise, pois a luta pela hegemonia, nesses termos, não é sob o princípio de um projeto de con - senso de dada elite que pretende inter - nalizar no órgão o sentido/compreensão política do seu papel institucional. Um dos poucos teóricos políticos que pro - põe uma leitura que contempla as con - dições macroestruturais e os processos da micropolítica é Terry Karl, que propõe um enfoque mediano (ARTURI, 2001):
A autora elaborou a noção de “contin - gência” para escapar do dilema “deter - minismo das estruturas versus liberdade do ator” e capturar os vínculos entre os fatores macroestruturais, a tradição insti - tucional do país e as opções dos atores políticos. É preciso demonstrar “como, em dado momento, o leque de opções disponíveis é função das estruturas cria - das em período anterior e como essas decisões estão condicionadas pelas ins - tituições estabelecidas no passado (…) Nessa perspectiva, as instituições políti - cas pré-existentes realizam a mediação entre a estrutura sócio-econômica e as ações dos atores políticos”.
Com efeito, os legados autoritários na área de Inteligência podem ser caracteri - zados como expressão de contingências que permeiam a institucionalização dos serviços secretos. Nesse sentido, na tra - vessia da transição, o perfil das agências
vai ser configurado a partir de escolhas condicionadas. Se, ao fim de uma transi - ção, persistirem enclaves da velha ordem configurando o regime, esses certamente influenciarão as escolhas dos atores he - gemônicos no aparelho de Estado. Isso porque os atores possuem, tendencial - mente, uma predisposição em reproduzir no interior do órgão memórias e práticas autoritárias. Uma elite hierárquica militar que seja institucionalmente aferrada ao serviço secreto dificilmente se afastará dessa “reserva de domínio” de poder estratégica naquelas transições de uma ordem autoritária de cariz militar para a instauração de um regime democrático. Aliás, essa observação vale também para as transições pactuadas hegemonizadas por uma elite civil.
O referencial institucional também é im - portante para a análise comparada de serviços secretos numa transição políti - ca. Esse marco serve para explicar como a institucionalização dos serviços de In - teligência é afetada pela disputa entre burocracias e policymakers. De acordo com Théret, o institucionalismo aponta para a “necessidade de se levar em con - ta, a fim de compreender a ação dos in - divíduos e suas manifestações coletivas, as mediações entre as estruturas sociais e os comportamentos individuais” (THE - RET, 2003). Na teoria institucional, o debate contemporâneo enfoca três no - vos institucionalismos em Ciência Políti - ca, a saber: a) Histórico; b) da Escolha Racional, e c) Sociológico.
Para Hall e Taylor, essas três vertentes distinguem-se analiticamente a partir de duas questões: como tais enfoques en -
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uma abordagem teórico-metodológica comparada
caram a relação entre instituições e com - portamentos individuais e como veem o processo de formação e transforma - ção das instituições (HALL e TAYLOR, 2003). Para os dois autores, é possível responder à primeira questão a partir das noções de enfoque estratégico e enfoque cultural.16 No primeiro caso, enfatiza - -se o caráter instrumental e estratégico do comportamento (HALL e TAYLOR, 2003, p. 227):
Nessa perspectiva, as instituições têm sobre o comportamento do indivíduo o efeito de reduzir a incerteza em relação a como será a ação dos outros. O enfoque cultural, privilegiado pela teoria das or - ganizações (na base do institucionalismo sociológico), enfatiza, ao contrário, a di - mensão rotineira do comportamento e o papel desempenhado pela visão de mun - do do ator na interpretação de situações. Nesse caso, as instituições corresponde - riam aos “planos morais e cognitivos de referência sobre os quais são baseadas a interpretação da ação”.
Segundo Théret, na concepção estraté - gica as instituições resultam de um cál - culo intencional e funcional dos agentes em busca de otimizar seus ganhos. “Ao contrário, para a concepção ‘cultural’, baseada em níveis de percepção e em comportamentos rotineiros, as institui - ções são a tal ponto convencionais que quase escapam à análise; resistiriam à mudança até porque estruturariam mes - mo as escolhas individuais visando a re - forma”.17 São essas as abordagens típicas da vertente da escolha racional.
O institucionalismo histórico parte de pressupostos menos fechados em ter - mos metodológicos. Para essa vertente, o ator decide com base em um cálculo, mas este não é “puro”, dado que é me - diatizado pela posição do ator e o con - texto social no qual interage: “Cálculo e estrutura se combinariam para formar atores coletivos, que agiriam no plano de macroinstituições herdadas e com base em relações de poder assimétricas”. 18
Essa coletividade de atores é questiona - da por Elster a partir de uma visão cen - trada no individualismo metodológico. Para ele, somente os indivíduos agem e pretendem algo, não as instituições: “Se pensarmos em instituições como indiví - duos em grande escala e esquecermos que as instituições são compostas de indivíduos com interesses divergentes, podemos ficar irremediavelmente perdi - dos” (ELSTER, 1989). Há um exagero nessa crítica, pois o enfoque histórico reconhece que as instituições também são suscetíveis à influência dos interes - ses e dos cálculos dos atores, mas não absolutiza, como faz o referencial da es - colha racional, a intencionalidade do ator como elemento fundamental na gênese e mudança das instituições. Mas antes de expor o institucionalismo histórico, tomemos desde já a definição que os te - óricos dessa vertente têm de instituição (HALL e TAYLOR, 2003, p. 196):
De modo global, como os procedimen - tos, protocolos, normas e convenções oficiais e oficiosas inerentes à estrutura organizacional da comunidade política
16 Idem, p. 227.
17 THERET, Bruno, op.cit., p. 228.
18 Ibidem .
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ou da economia política. Isso se estende das regras de uma ordem constitucional ou dos procedimentos habituais de fun - cionamento de uma organização até às convenções que governam o comporta - mento dos sindicatos ou as relações en - tre bancos e empresas.
Hall e Taylor relacionam as seguintes propriedades do institucionalismo histó - rico, a saber: a) articulação dos critérios metodológicos cultura e cálculo na análi - se da relação entre instituições e ação; b) importância atribuída às relações de po - der assimétricas; c) reconhecimento de uma causalidade social dependente da trajetória histórica; e d) reconhecimento de fatores múltiplos sobre a vida políti - ca, além das instituições, como o papel desempenhado pela difusão de ideias e pelo desenvolvimento socioeconômico. 19
Outro critério distintivo do institucio - nalismo centra-se na gênese das insti - tuições. Essas surgiriam para “regular conflitos inerentes ao desenvolvimento da diferenciação de interesses e à assi - metria de poder”.20 A análise das rela - ções de poder assimétricas é importante, porque pode indicar como as instituições repartem o poder desigualmente nas ne - gociações intrainstitucionais e interinsti - tucionais. Compreender essa repartição desigual é necessário porque, no caso de órgãos de Inteligência gerados durante e após transições políticas, pode indicar o grau de ruptura com a ordem autoritária ou a permanência de clivagens autoritá -
rias sob a forma de legados. De fato, a distribuição do poder dentro de órgãos de Inteligência (perspectiva intrainstitu - cional) e a hierarquização dos mecanis - mos de accountability do e no sistema de Inteligência (perspectiva interinstitu - cional) podem servir como indicativos do grau de instauração e recepção de um perfil institucional democrático na ativi - dade e sobre seus agentes públicos.
A compreensão da trajetória institucio - nal (pathdependency) postulada pelos teóricos do institucionalismo histórico tem como pressuposto que os atores são afetados pelas propriedades de cada contexto local.21 Essas propriedades po - dem ser heranças de um passado social e político no qual dois ou mais atores político-institucionais foram antagonistas em um processo de conquista e manu - tenção do poder. Assim, os legados de uma ordem autoritária também podem ser considerados propriedades que afe - tam os interesses e condicionam as es - colhas dos atores na transição ou conso - lidação democrática. Para Amy Zegart, a institucionalização dos serviços secretos pode ser estudada sob duas teses: a) As burocracias da área de segurança nacio - nal tenderiam a ser criadas pelo Poder Executivo (com um papel secundário do Parlamento), e o seu desenho institucio - nal refletiria as disputas entre aquelas burocracias e os interesses da equipe presidencial; e b) As escolhas estruturais
19 Idem, p. 229.
20 Idem, pp. 198-202.
21 THERÉT, Bruno, op.cit., p. 229. Para a Teoria da Escolha Racional, uma instituição surge como solução para problemas de coordenação entre indivíduos que visam um fim ótimo face a um problema. Para o Institucionalismo Sociológico, a coordenação da ação por meio de dispositivos cognitivos é central às organizações.
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uma abordagem teórico-metodológica comparada
feitas no nascimento de um órgão de se - gurança nacional tenderiam a durar no tempo, e tais estruturas seriam alteradas pela mudança dos interesses dos atores principais e por eventos externos. 22
A segunda tese pode explicar esse para - doxo no contexto das democracias sóli - das, mas acredito ser incompatível para padrões evolutivos de países que nas últimas décadas sofreram rupturas de ordem político-institucionais (golpes de Estado, ditaduras militares e civis etc). A ideia de durabilidade de dadas “es - colhas estruturais” dos atores principais (stakeholders) é contraditada empirica - mente pelos casos de muitos países cuja transição política não debelou totalmente legados autoritários na área de seguran - ça e defesa. De fato, a pouca durabilida - de estrutural das escolhas de atores que decidem politicamente constrangidos por legados de regimes autoritários é um alerta importante para, na perspectiva institucionalista, nem reificar o objeto, nem minimizar as decisões dos atores. Se a cultura importa, importa mais ainda a política das elites.
Conclusão
Cremos ter demonstrado que a abor - dagem comparada, com o aporte dos diversos referenciais criticados, é uma estratégia robusta para analisar as agendas políticas, as clivagens evolu - tivas, o desenho institucional e o perfil das elites que formatam e/ou integram os serviços de Inteligência nas demo - cracias consolidadas ou precárias. Em face dessas instituições tradicional - mente fechadas, o método comparado pode servir como apoio na fiscalização e controle de suas atividades, nas pers - pectivas intra e interinstitucional.
A principal força metodológica dessa estratégia é a capacidade de articular criticamente a variedade dos marcos te - óricos, focando-os sobre as experiên - cias concretas das agências e de suas elites políticas. A capacidade analítica do pesquisador poderá lançar luz sobre a evolução desses objetos que, de fato, muitas vezes ocupam áreas cinzentas do aparelho de Estado, mas nem por isso o seu ethospolítico e os interesses de suas burocracias são inescrutáveis ao juízo da Ciência Política.
22 HALL, Peter A. and TAYLOR, Rosemary C. R., op.cit., p. 200.
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QUANDO O SEGREDO É A REGRA:
ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA E ACESSO À INFORMAÇÃO NO BRASIL
Gills Vilar-Lopes *
Resumo
ÉpossívelcompatibilizarosigilocaracterísticoevitalàAtividadedeInteligênciacomademo - cracia?Responderatalindagaçãoéoobjetivoprincipaldestetrabalho.Comomarcosteóri - cos,opta-sepelosseguintesarcabouçosconceituais:ateoriadoaccountability,de Guillermo O’Donnel;opreceitodelimitaçãotemporaldosegredo,popularizadoporNorberto Bobbio; eopressupostodefendidoporPauloBonavidesdequeodireitoàinformaçãoseencontra no bojodoschamadosdireitoshumanosdequartadimensão.Ademais,doutrinadoresdaárea do Direito–p.ex.,JosédosSantosCarvalhoFilhoeGilmarMendes–edaAtividadedeInteligên - cia–p.ex.,JoanisvalBritoGonçalveseMarcoCepik–ajudamalançarluzsobreotema em tela.Porfim,elege-seumametodologiamista,ouseja,qualitativaequantitativa,cujas fontes primáriassãoaConstituiçãoFederalde1988,tratadosinternacionais,leis infraconstitucionais –comespecialatençãoàLeideAcessoàInformação(LAI)–edadosextraídosdoPortalAces - soàInformação,paraacriaçãoeamanipulaçãodeumbancode dados.
Palavras-chave: AtividadedeInteligência;LegislaçãodeinteressedaAtividadede Inteligência; LeideAcessoà Informação.
Sigilo e inteligência[...] são temas sobre os quais seria oportuno que cien - tistas políticos[...] e juristas se debruçassem mais detidamente. Reconhe - cendo os problemas que as discussões sobre sigilo e agências de inteli - gência trazem para todas as democracias do mundo, o pior que se pode fazer é fingir que eles não existem. (PROENÇA JR; DINIZ, 1998, p. 92).
Introdução
Arazão de ser deste trabalho gira em torno da relação entre o sigilo da
Atividade de Inteligência, de um lado, e a questão democrática, do outro. No atual estado de coisas jurídico brasileiro, a Lei de Acesso à Informação (LAI) – Lei
nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 – determina a “observância da publicida - de como preceito geral e do sigilo como exceção” (BRASIL, 2011, art. 3º, I). To - davia, essa lógica parece colocar em rota de colisão duas idiossincrasias das atuais
* Doutor em Ciência Política (Relações Internacionais) pela Universidade Federal de Pernam - buco (UFPE) e Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Fe - deral de Rondônia (UNIR).
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democracias liberais: (i) a tutela do direi - to fundamental de acesso à informação; e (ii) a atuação inerentemente sigilosa dos seus serviços secretos.
A Atividade de Inteligência – também conhecida por Inteligência de Estado ou espionagem – visa a coletar, analisar e disseminar informações relevantes para o processo decisório (CEPIK, 2003, pp. 13 e 21). No caso brasileiro, ela se liga umbilicalmente ao assessoramento estratégico do Presidente da República (BESSA, 2014, p. 68; BRASIL, 1999, art. 4º, I; GONÇALVES, 2013; PRO - ENÇA JR; DINIZ, 1998). Para atingir esse intento, a legislação de interesse da Atividade de Inteligência garante ao órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), ou seja, à Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a possi - bilidade de recorrer a métodos sigilosos. Não é à toa, pois, que o sentido restrito de Inteligência aqui empregado é sinô - nimo de segredo e informação secreta (CEPIK, 2003, p. 28).
Diante dessa relação entre publicidade e sigilo governamentais, surge o seguinte problema de pesquisa: em que medida a Atividade de Inteligência limita o direito de acesso à informação no Brasil? A fim de responder a essa pergunta, parte-se da hipótese principal de que a concreti - zação do direito de acesso à informação não encontraria impedimentos frente à Atividade de Inteligência. Assim, sur - gem as hipóteses secundárias de que (i) a informação sigilosa – matéria-prima de qualquer serviço secreto – seria com - patível com a democracia; e (ii) o sigilo
inerente à Atividade de Inteligência não obstaria o exercício do controle social.
Logo, analisar a aparente relação con - traditória dos itens (i) e (ii) é o objetivo geral deste trabalho, tendo, ainda, como objetivos específicos (i) analisar a natu - reza democrática do sigilo inerente à In - teligência de Estado e (ii) compreender sua coexistência com o direito de acesso à informação, no âmbito do Estado De - mocrático de Direito brasileiro.
Com o fito de manter uma lógica argu - mentativa entre problema de pesquisa e literatura especializada, utilizam-se marcos teóricos tanto da Ciência Po - lítica quanto do Direito, a exemplo da teoria de accountability (O’DONNEL, 2002), do preceito de limitação tempo - ral do segredo (BOBBIO, 1997) e do pressuposto de que o direito à informa - ção se encontra no bojo dos chamados direitos humanos de quarta dimensão (BONAVIDES, 2014).
Para testar a hipótese principal, opta-se metodologicamente por uma aborda - gem mista, utilizando-se tanto métodos quantitativos quanto qualitativos. No que tange aos métodos quantitativos, elege - -se a estatística descritiva, a partir de da - dos oriundos do sitea cessoainformacao. gov.br. Quanto aos métodos qualitativos, enfatiza-se a revisão bibliográfica de normas sobre Atividade de Inteligência e acesso à informação, tendo como fon - tes primárias a Carta Magna brasileira de 1988, tratados internacionais e leis in - fraconstitucionais, especialmente a LAI.
O presente trabalho divide-se em duas seções principais. Na primeira, abarcam -
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Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil
-se questões mais conceituais. Já a se - gunda seção analisa a coexistência entre Atividade de Inteligência e direito de acesso à informação no Brasil. Destaca - -se que o desenho de pesquisa foi ela - borado com o intuito de que cada uma das duas principais seções – segunda e terceira – englobe uma hipótese secun - dária e um objetivo específico, de modo que, agindo dessa forma, deixam-se para a Conclusão tanto o teste final da hipóte - se principal quanto o atingimento ou não do objetivo geral já mencionados.
Delineando o problema: a aparente incompatibilidade da Atividade de Inte - ligência com a democracia
Analisa-se aqui a natureza do sigilo ine - rente à Atividade de Inteligência, bem como sua relação – aparentemente con - flituosa – com um dos principais pressu - postos democráticos da atualidade jurí - dica: o direito de acesso à informação.
A diferença entre direito à informação e direito de acesso à informação dos ór - gãos públicos contém suas nuances.
De acordo com a doutrina administrati - vista, p. ex., o primeiro direito, “embora nascido com o timbre de direito indivi - dual, atualmente [...] espelha dimensão coletiva, no sentido de que a todos, de um modo geral, deve assegurar-se o direito” (CARVALHO FILHO, 2014, p. 27). Já o segundo direito é fundamen - tal (BRASIL, 2015a, p. 79) e objetiva “[...]viabilizar o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, desdequeres - peitadoso direito à intimidade (art. 5º, X, CF) e assituaçõeslegaisdesigilo (art.
5º,XXXIII,CF)” (CARVALHO FILHO, 2014, p. 27, grifo nosso).
Se o direito de acesso à informação está diretamente relacionado à publicidade (CARVALHO FILHO, 2014, p. 26), po - de-se dizer que a Atividade de Inteligên - cia está estritamente ligada ao sigilo (CE - PIK, 2003, pp. 27-28). Porém, como nota a ex-presidente da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligên - cia (CCAI) do Congresso Nacional, De - putada Federal Jô Moraes, a Inteligência brasileira não lida apenas com questões de Defesa Nacional, mas também com Segurança Nacional, tais como “[...] o acompanhamento de movimentos de fronteira, [...]a localização de indícios de praga criminosa numa produção agríco - la ou de crescimento do desmatamento” (MORAES, 2015). Portanto, trata-se de atividade necessária para assessorar a tomada de decisão no mais alto escalão da política nacional; daí a importância do sigilo em seus planejamentos e ações (BRASIL, 1999).
O tipo de sigilo aqui analisado é, por - tanto, aquele imprescindível à própria existência da Atividade de Inteligência e à segurança da sociedade e do Estado (BRASIL, 1988, art. 5º, XXXIII). Logo, não se estudam aqui, p. ex., o sigilo pre - ceituado para o inquérito policial, de que trata o art. 20 do Código de Processo Penal nem os sigilos bancário, fiscal, industrial, empresarial, das Sociedades Anônimas, decorrente de direitos auto - rais ou de risco à governança empresarial (BRASIL, 2015a, pp. 67-77), da corres - pondência ou das comunicações. Mais especificamente, trata-se do “[...]sigilo
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das atividades de inteligência, como as da Abin, que permanecem sob restrição de acesso caso devidamente classifica - das, conforme disposto no inciso VIII do art. 23 da LAI” (BRASIL, 2015a, p. 77). Entrementes, não se pode banalizar as ressalvas constitucional e legais, sob o risco de degenerar o próprio direito (MENDES; BRANCO, 2014, p. 450).
Diante das ações sigilosas, características dos serviços de Inteligência, é até natural que, no âmbito de um Estado Democrá - tico de Direito, preceitos como transpa - rência e accountabillityentrem em con - flito com o segredo (CEPIK, 2003, p. 137). É nesse sentido que Proença Jr. e Diniz (1998, p. 90) apregoam que “a tensão entre sigilo e democracia é uma das mais delicadas dentre todas as dis - cussões sobre governos democráticos”.
Democracia,accountabilitye transparên - cia são conceitos interrelacionados, po - rém diferentes (GONÇALVES, 2008, p. 229). Embora não haja consenso sobre o conceito de democracia (MAINWA - RING; BRINKS; PÉREZ-LIÑÁN, 2001, p. 648), percebe-se que sua definição subminimalista – a qual defende a tese econômica de que democracia é apenas a expressão do voto popular – é atual - mente minoritária, fazendo surgir uma gama de definições outras atrelando democracia à concretização e à efetivi - dade de direitos fundamentais, tal como o direito à informação. Accountability , por sua vez, traz a ideia de prestação de
contas (CEPIK, 2003, pp. 138 e 183; SOUSA, 2012, p. 28) e de responsabili - dade pública (MAINWARING; BRINKS; PÉREZ-LIÑÁN, 2001, p. 651). Conso - ante tipologia amplamente difundida por O’Donnel (2002), destaca-se a versão vertical de accountability, em que cida - dãos e sociedade civil organizada esta - belecem controles sobre o Estado.
Para se chegar a um alto grau deaccoun - tabilityvertical, é necessário também que os governados possam ter acesso a in - formações públicas, providas median - te transparência – ativa e passiva – de quem os governa. Assim, transparência é um imperativo das democracias con - temporâneas (CEPIK, 2003, p. 15) e “[...]pode ser percebida como a neces - sidade de ampla publicidade dos atos de Estado e de governo. Nesse caso, o acesso à informação é elemento funda - mental da transparência[...]” (GONÇAL - VES, 2008, p. 229), uma vez que “[...] a transparência no trato da coisa pública não é apenas um direito do cidadão, mas um dever do Estado” (FIGUEIREDO, 2015). Esses elementos mantêm uma relação diretamente proporcional entre si: quanto mais transparência, mais ac - countability e, consequentemente, mais democrático um regime político é.
Assume-se também o direito à informa - ção como direito fundamental de quarta dimensão1. Isso quer dizer que a demo - cracia positivada só será “[m]aterialmen - te possível graças ao avanço da tecno -
1 A teoria tridimensional dos direitos humanos, popularizada por Norberto Bobbio, encontra bastante consonância na literatura jurídica, tendo na primeira dimensão os direitos civis e políticos; na segunda, os sociais, econômicos e culturais; e na terceira, os chamados direi - tos coletivos, como meio-ambiente e paz. Atualmente, questões como patrimônio genético e acesso à informação e à Internet vêm sendo alocados em outras dimensões.
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Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil
logia de comunicação, e legitimamente sustentável graças à informação correta e às aberturas pluralistas do sistema”
(BONAVIDES, 2014, p. 586).
Por seu turno, Bobbio (1997) lança luz sobre a limitação temporária do segredo pelo Estado, legítimo corolário da trans - parência pública. Para ele, “[...]o caráter público é a regra, o segredo a exceção, e mesmo assim é uma exceção que não deve fazer a regra valer menos, já que o segredoéjustificávelapenasse limitado notempo[...]” (BOBBIO, 1997, p. 86, grifo nosso).
Bobbio credita a ideia-chave da limita - ção temporal do segredo/sigilo a Nata - le (1976 apudBOBBIO, 1997, p. 86, grifo nosso), o qual registrou que “todas
as operações dos governantes devem ser conhecidas pelo Povo Soberano, exceto algumasmedidasdesegurançapública ,
que ele deve conhecer apenas quando cessar o perigo”. Observa-se esse pen - samento também no fato de que:
[...]a Constituição de 1988 institui uma ordem democrática fundada no valor da publicidade[...], substrato axiológico de toda a atividade do Poder Público. No Estado Democrático de Direito, a publi - cidade é a regra; o sigilo, a exceção[...]. (MENDES; BRANCO, 2014, p. 407, grifo do autor).
De forma contrária, a ordem jurídica imediatamente anterior à atual Carta Maior de 1988 preconiza a obrigato - riedade de os órgãos públicos respon - derem às consultas do cidadão, desde que relacionadas a seus legítimos inte - resses e pertinentes a assuntos específi - cos da repartição requerida, ressalvados os de caráter sigiloso (BRASIL, 1967,
art. 176). Essa lógica foi aperfeiçoada, de modo que a Constituição Cidadã, ao elencar a legalidade e a publicidade como princípios da Administração Públi - ca (BRASIL, 1988, art. 37, caput; CAR - VALHO FILHO, 2014, p. 26), buscou garantir a “[...]chamada máxima divulga - ção [das informações públicas], em que a publicidade é a regra e o sigilo a exce - ção” (BRASIL, 2015a, p. 52), adotada também pela LAI.
Esse estado de coisas faz surgir a se - guinte dúvida: como, então, certificar que uma atividade de Estado seja, majo - ritariamente, realizada de forma sigilosa, porém dentro dos princípios norteadores da respublicabrasileira? Posto de forma diferente: como garantir ao cidadão o di - reito à informação pública quando, em casos excepcionais, o sigilo é a regra, e a publicidade, a exceção?
Diante dessa problemática, Sousa (2012, p. 27) fornece um indício de resposta, ao ponderar que a contradição entre sigilo-democracia e segredo-trans - parência pode ser superada com um efi - ciente controle público sobre a Atividade de Inteligência. Pode-se complementar tal ideia da seguinte forma: se accoun - tability é central para a manutenção das democracias hodiernas, ela
[...]torna-se muito mais relevante em si - tuações onde a transparência é limitada por comprometer, por exemplo, a segu - rança nacional – como ocorre com a ati - vidade de inteligência. Daí se dizer que determinada ação ou conduta, ainda que não possa ser transparente para o público em geral, deve estar sujeita ao controle daqueles legal ou constitucionalmente competentes para isso. (GONÇALVES, 2008, pp. 229-230).
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Uma vez que, ainda, lembra Gonçalves (2013), mesmo que as informações rela - cionadas à Inteligência de Estado sejam sigilosas e, portanto, fechadas ao público em geral, cabe aos representantes políti - cos fazer seu controle precípuo.
A LAI é outra importante fomentadora do controle da Atividade de Inteligência, que ajuda a manter a excepcionalidade do sigilo e, ao mesmo tempo, busca ga - rantir a publicidade até mesmo de partes de documentos considerados sigilosos.
Como se vê, a tensão entre publicida - de, transparência, acesso à informação e sigilo é permanente, mas compatível, sobretudo em países democráticos que possuem um eficaz sistema de controle sobre a Inteligência de Estado.
Atividade de Inteligência à luz da LAI
Esta seção põe à prova a segunda hi - pótese secundária de que, no Brasil, o
sigilo inerente à Atividade de Inteligên - cia não obstaria o exercício do controle social. Assim, assume-se que o sigilo inerente à Atividade de Inteligência não atrapalha o direito de acesso à informa - ção; restando saber se essa compatibi - lidade jurídica encontra efetividade nas leis e políticas públicas brasileiras de acesso à informação. Emprega-se o con - ceito de controle social aqui em seu sen - tido amplo, embora órgãos de controle – p. ex., o Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) – atrelem-no, em sentido estrito, ou seja, à fiscalização de gastos públicos, e, por - tanto, ligado a accountability .
Antes da publicação da LAI em 2011, já existia significativo arcabouço legal sobre o tema. OQuadro 1 elenca leis brasileiras e tratados internacionais que, de alguma forma, interessam ao direito de acesso à informação e à Atividade de Inteligência.
QUADRO 1: Rol legal sobre direito de acesso à informação e Atividade de Inteligência.
Ano a)
Dispositivo
Referência ao direito de acesso à informação
Referência à Atividade de Inteligência
1948
Declaração Universal dos Direitos Humanos
art. 19
--
1966
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592/92)
art. 19, § 2o-3 o
art. 19, § 3o, “b”
1969
Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica
art. 13, itens 1- 5
art. 13, item 2, “b ”
1988
Constituição da República Federativa do Brasil
art. 5o, X, XII, XIV, XXII,
XXXIII, LX e LXXII; art. 37, § 3o, II; art. 216, § 2 o
art. 5o, XXXIII
1990
Estatuto dos Servidores Públicos
Civis da Administração Pública Federal (Lei no 8.112)
art. 116, V, “a”; art. 117, II
art. 116, V, “a”
1991
Política Nacional de Arquivos (Lei no 8.159)
art. 4o-5o; art. 14; art. 18-21 ; art. 25
art. 4 o
1991
Lei sobre os Acervos Documentais
Privados dos Presidentes da República (Lei no 8.394 )
art. 4o; art. 6o, II-III; art. 8o , VIII e XI; art. 10; art. 15, § 2°
art. 6°, parágrafo único
1994
Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal
itens VII-VIII; XIV, “s”; XV, “h ” e “l”
item VII
1999
Lei do Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/1999)
art. 2o, V
art. 2o, V
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Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil
2000
Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão
item 4
item 4
2005
Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção
art. 10; Art. 13, 1- 2
art. 13, 1, d
2009 LC 131 tudo --
2011
Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei no 12.527/2011)
tudo
art. 7o, VII; art. 23-24; art. 35, § 1o, III; art. 35, § 2o; art. 37, II
2012
Regulamento da LAI (Decreto n o
7.724)
tudo
art. 6o; art. 25-27; art. 47, IV; art. 49
2012 Decreto no 7.845 b) tudo art. 45- 47
2012 Regimento Interno da CMRI c) tudo art. 1o, IV
Fonte: Elaboração própria.
Notas:
a) Avariável Ano refere-se à publicação da norma original, e não, p. ex., à do Decreto que internaliza tratado no ordenamento jurídico pátrio.
b) Regulamenta procedimentos para credenciamento de segurança e tratamento de informação sigilosa e dispõe sobre o Núcleo de Segurança e Credenciamento.
c) CMRI = Comissão Mista de Reavaliação de Informação. Conferir, ainda, Atas, Decisões e Súmulas da Comissão, a partir de 2012, disponíveis em http://acessoainformacao.gov.br/assuntos/recursos/recur - sos-julgados-a-cmri.
Como se pode observar, os primeiros dispositivos sobre direito de acesso à in - formação são esparsos, internacionais e “principiológicos”. Ao se analisar o Qua - dro 1, percebe-se que, ao longo da série temporal, ocorreu um triplo movimento, no sentido de (i) os tratados internacio - nais apenas repetirem o mantra positiva - do pelo art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, (ii) mais recen - temente, as leis brasileiras reproduzirem ipsislitteris a ressalva do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988 (CF88) e (iii) a criação, a partir de 2011, de uma “cultura de acesso” ou, nas palavras da LAI, uma “cultura de transparência na administração pública” (BRASIL, 2011, art. 3º, IV).
Destaca-se também o fato de que as res - salvas ou previsões de exceções ao direi - to de acesso à informação pública não aparecem na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que apenas declara, como seu próprio nome já remete, o di - reito à informação como universal. So - mente em 1966 é que o § 3º do art. 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis
e Políticos (BRASIL, 1992) traz ressalvas a tal direito, entre elas a “salvaguarda da segurança nacional”. Já a CF 88 cita, in verbis, o parâmetro legal para o acesso à informação, bem como a exceção a esse direito, que passa a ser o norte da atua - ção da Atividade de Inteligência no Brasil:
todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, res - salvadasaquelascujosigilosejaimpres - cindívelàsegurançadasociedadee do Estado. (BRASIL, 1988, art. 5º, XXXIII, grifo nosso).
Ora, em plena Era da Informação, cabe, cada vez mais, a máxima de que infor - mação é poder (BESSA, 2014, p. 104) e que, no âmbito da Inteligência de Esta - do, “a Informação estratégica importan - te, assim como o poder, não se entrega a ninguém; [...]têm de ser conquistados” (BESSA, 2014, p. 128).
Por sua vez, a LAI deve ser observada por todos os entes federativos, a fim de que os direitos à informação e ao acesso
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Gills Vilar-Lopes
à informação sejam garantidos (CARVA - LHO FILHO, 2014, pp. 26-27; MEN - DES; BRANCO, 2014, p. 464). Já que nenhum direito fundamental é absoluto (MENDES; BRANCO, 2014, pp. 139, 142-144), a LAI trata de definir a res - salva constitucional do sigilo a partir do momento em que esta se mostra impres - cindível à segurança da sociedade e do Estado. Mas o que se quer dizer por “segurança da sociedade e do Estado”? Diante da imprecisão do constituinte
VI - prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;
VII - pôr em risco a segurança de institui - ções ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou
VIII -comprometeratividades deinte - ligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infra - ções. (BRASIL, 2011, grifo nosso).
originário, a CGU lembra que o legisla - dor da LAI criou um rol exaustivo dos tipos de informações que se aplicam à ressalva constitucional, instituindo tam - bém processos e prazos específicos para a restrição de acesso a tais informações (BRASIL, 2015a, p. 78), a saber:
Art. 23. São consideradas imprescin - díveisàsegurançadasociedadeou do Estadoe, portanto, passíveis de classifi - cação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:
I - pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;
II - prejudicar ou pôr em risco a condu - ção de negociações ou as relações inter -
nacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;
III - pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;
IV - oferecer elevado risco à estabilida - de financeira, econômica ou monetária do País;
V - prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;
Como se vê, a LAI elenca, taxativamente, oito hipóteses em que informações im - prescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado podem ser “classificadas”2 , destacando-se a derradeira hipótese, comprometer atividades de Inteligência.
Ademais, seguindo Bobbio (1997) e seus pressupostos de temporariedade do segredo público, a LAI ainda apresenta os seguintes tipos e prazos máximos da informação classificada quanto à sua im - prescindibilidade à segurança da socie - dade ou do Estado brasileiro:
Art. 24. [...]
§ 1º Os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a clas - sificação prevista no caput, vigoram a partir da data de sua produção e são os seguintes:
I. ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos; II. secreta: 15 (quinze) anos; e
III. reservada: 5 (cinco) anos.
§ 2º As informações que puderem co - locar em risco a segurança do Presi - dente e Vice-Presidente da República e
2 “O ato de estabelecer que determinada informação se sujeita a tais hipóteses chama-se clas - sificar a informação e o ato administrativo decisório que classifica a informação chama-se Termo de Classificação da Informação – TCI” (BRASIL, 2015a, pp. 78-79, grifo nosso).
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Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil
respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição.
§ 3º Alternativamente aos prazos pre - vistos no § 1º, poderá ser estabelecida como termo final de restrição de acesso a ocorrência de determinado evento, des - de que este ocorra antes do transcurso do prazo máximo de classificação.
§ 4º Transcorrido o prazo de classifica - ção ou consumado o evento que defina o seu termo final, a informação tornar-se-á, automaticamente, de acesso público.
§ 5º Para a classificação da informação em determinado grau de sigilo, deve - rá ser observado o interesse público da informação e utilizado o critério menos restritivo possível, considerados:
I. a gravidade do risco ou dano à segu - rança da sociedade e do Estado; e
II. o prazo máximo de restrição de acesso ou o evento que defina seu termo final. (BRASIL, 2015b, grifo no original).
Como observa Brasil (2015a, p. 80), a única classificação da informação pas - sível de prorrogação é a ultrassecre - ta – uma única vez e por igual período (BRASIL, 2011, art. 35, § 1º, III; § 2º). Neste ponto, podem-se esperar corri -
queiras classificações de informações – sobretudo, ultrassecretas – por parte do serviço secreto brasileiro. Pondo de forma diferente: parte-se da hipótese de que a Atividade de Inteligência brasileira exerceria um efeito positivo sobre o nível de classificação de informações.
Para testar essa hipótese, constrói-se um banco de dados a partir do Levantamen - todeinformaçõesclassificadasedesclas - sificadasdosórgãosdoPoder Executivo Federal, do Portal Acesso à Informação.
Antes, porém, registre-se que, apesar de Brasil (2015c) informar que o número total de observações – quantidade de órgãos ou entidades que responderam à pesquisa – ser de 167, por alguma ra - zão desconhecida, a planilha eletrônica disponibilizada pela CGU contém 168 observações/linhas. Logo, o banco de dados, aqui nomeado inf_classif_bra - sil.dta, é constituído por uma amostra
3
(n=168) oriunda de uma população (N=305) baseada exclusivamente em órgãos e entidades do Poder Executivo Federal, sendo composto pelas variáveis listadas no Quadro 2.
QUADRO 2: Variáveis do banco de dados inf_classif_brasil.dta.
Variável Descrição Tipo
orgao Nome do órgão ou entidade do Executivo Federal Qualitativa
ic_reserv Número de informações classificadas no tipo reservada (5 anos) Quantitativa
ic_sec Número de informações classificadas no tipo secreta (15 anos) Quantitativa
ic_ultrassec Número de informações classificadas no tipo ultrassecreta (25 anos) Quantitativa
ic_total Somatório de informações classificadas Quantitativa
inf_desclassif Número de informações desclassificadas Quantitativa
Fonte: Elaboração própria.
3 O banco de dados está disponível irrestritamente em repositório virtual, no endereço: https:// github.com/gillsvilarlopes/lai-e-inteligencia.
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 43
Gills Vilar-Lopes
Selecionando apenas órgãos públicos que possuem, pelo menos, uma informação classificada, obtém-se que 42 das 168 ob -
servações – exatamente 25% da amostra – variam entre 1 e 45.935 informações clas - sificadas, conforme a Tabela 1 apresenta.
TABELA 1: Órgãos públicos federais com pelo menos uma informação classificada (2015).
Órgão
Informação reservada
Informação secreta
Informação ultrassecreta
Total
Comaer -----Comando da Aeronáutica 45.248 687 0 45.935
MRE---------Ministério das Relações Exteriores 17.552 4.082 151 21.785
GSI-----------Gabinete de Segurança Institucional da
Presidência da República
4.090
3.800
0
7.890
MD-----------Ministério da Defesa 2.825 764 33 3.622
Anac---------Agência Nacional de Aviação Civil 2.842 11 0 2.853
Infraero -----Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária
2.099
0
0
2.099
CEX----------Comando do Exército 811 1.056 0 1.867
UFSC--------Universidade Federal de Santa Catarina 866 3 0 869
UFMT -------Fundação Universidade Federal de Mato Grosso
383
0
0
383
Antaq--------Agência Nacional de Transportes
Aquaviários
268
0
0
268
Capes -------Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
3
243
0
246
AGU ---------Advocacia-Geral da União 220 0 0 220
AEB----------Agência Espacial Brasileira 10 182 0 192
Ibama -------Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
146
0
0
146
MF -----------Ministério da Fazenda 139 0 0 139
BNB----------Banco do Nordeste do Brasil S.A. 96 29 0 125
MCT ---------Ministério da Ciência e Tecnologia 87 23 0 110
LNA----------Laboratório Nacional de Astrofísica 100 0 0 100
AmE ---------Amazonas Distribuidora de Energia S.A. 91 0 0 91
CDP ---------Companhia Docas do Pará 91 0 0 91
BNDES -----Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
56
0
0
56
Fiocruz------Fundação Oswaldo Cruz 0 54 0 54
MTE ---------Ministério do Trabalho e Emprego 32 0 0 32
ANS----------Agência Nacional de Saúde Suplementar 31 0 0 31
SEP----------Secretaria de Portos 27 0 0 27
MP -----------Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão
18
4
0
22
CGU---------Controladoria-Geral da União 15 0 0 15
ANP----------Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural
e Biocombustíveis
10
4
0
14
Inep----------Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira
10
0
0
10
Imbel --------Indústria de Material Bélico do Brasil 7 0 0 7
SAC----------Secretaria de Aviação Civil 7 0 0 7
Ancine-------Agência Nacional do Cinema 5 0 0 5
UFABC------Fundação Universidade Federal do ABC 4 0 0 4
Telebrás ----Telecomunicações Brasileiras S.A. 1 2 0 3
Unifei --------Universidade Federal de Itajubá 0 3 0 3
Codesp -----Companhia Docas do Estado de São Paulo 2 0 0 2
Huol----------Hospital Universitário Onofre Lopes 2 0 0 2
CEF----------Caixa Econômica Federal 1 0 0 1
HNSC -------Hospital Nossa Senhora da Conceição S.A. 1 0 0 1
MDIC--------Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior
0
0
1
1
UFCSPA----Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre
1
0
0
1
UFTM -------Universidade Federal do Triângulo Mineiro 1 0 0 1
Total 78.198 10.947 185 89.330
Fonte: Elaboração própria.
Fonte dos dados: http://www.acessoainformacao.gov.br/assuntos/relatorios-dados/informacoes-classifica - das/informacaoclassficada2015-xlsx.xlsx.
Nota: Última atualização em 1º ago. 2015.
44 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017
Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil
Antes de analisar a Tabela 1, é neces - sário compreender algumas questões institucionais brasileiras que envolvem tanto o direito de acesso à informação quanto a Atividade de Inteligência. Uma delas diz respeito à atualização do Le - vantamentodeinformações classificadas edesclassificadasdosórgãosdo poder executivofederalaqui utilizada, de 1º de agosto de 2015. Até essa data, a Abin vinculava-se ao então “antigo” Gabinete de Segurança Institucional da Presidên - cia da República (GSIPR). Mas, com a Reforma Ministerial de outubro de 2015, mudanças profundas na Atividade de In - teligência ocorreram: a Abin desvincula - -se do GSI e se subordina à recém-criada Secretaria de Governo; o GSI perde o status de Ministério e volta a se chamar Casa Militar (AQUINO, 2015; BRASIL, 2015e). Todavia, a Lei nº 13.341, de
29 de setembro de 2016, por seu tur - no, traz a primeira reforma ministerial do Governo Temer, que restaura o “novo” GSI no lugar da Casa Militar, com status de Ministério, e a Abin volta a se subor - dinar a ele (BRASIL, 2016b, pp. 3-4).
Nesse sentido, não é por acaso que a Tabela 1 apresente o GSI como o ter - ceiro órgão público federal que mais classifica informações, haja vista que, além de suas próprias classificações, es - tão também incluídas nele as da Abin 4
Mesmo assim, os dois principais órgãos da Atividade de Inteligência de Estado, Abin e GSI, detinham aproximadamente um terço do número de classificações em relação ao segundo colocado e não possuíam sequer uma informação classi - ficada no grau ultrassecreto, conforme mostra o Gráfico 1.
GRÁFICO 1: Órgãos com informações ultrassecretas (2015).

Fonte: Elaboração própria.
Fonte dos dados: http://www.acessoainformacao.gov.br/assuntos/relatorios-dados/informacoes-classifica - das/informacaoclassficada2015-xlsx.xlsx.
Nota: Última atualização em 1º ago. 2015.
4 As informações da Abin estão disponíveis no seguinte endereço: http://www.abin.gov.br/aces - so-a-informacao/informacoes-classificadas. Ademais, ainda em 1999, a lei que cria a Abin já previa que seus atos “[...], cuja publicidade possa comprometer o êxito de suas atividades sigi - losas, deverão ser publicados em extrato. § 1º Incluem-se entre os atos objeto deste trabalho os referentes ao seu peculiar funcionamento, como às atribuições, à atuação e às especifi - cações dos respectivos cargos, e à movimentação dos seus titulares. § 2º A obrigatoriedade de publicação dos atos em extrato independe de serem de caráter ostensivo ou sigiloso os recursos utilizados, em cada caso” (BRASIL, 1999, grifo nosso).
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 45
Gills Vilar-Lopes
Da mesma forma que o número de in - formações classificadas é conhecido pelo cidadão, o de informações des - classificadas5 também o é. Por meio de manipulações no banco de dados, é
possível conhecer quais órgãos públi - cos federais – e que, obrigatoriamen - te, responderam ao Levantamento da CGU – desclassificaram informações, consoante a Tabela 2.
TABELA 2: Órgãos públicos federais com pelo menos uma informação desclassificada (2015).
Órgão Informações desclassificadas
Comaer – Comando da Aeronáutica 43.187
MRE – Ministério das Relações Exteriores 17.544
CEX – Comando do Exército 17.224
GSI – Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República 1 .437
MD – Ministério da Defesa 651
Anac – Agência Nacional de Aviação Civil 593
Valec – Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. 195
UFSCar – Fundação Universidade Federal de São Carlos 105
UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora 100
ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar 26
MF – Ministério da Fazenda 20
Cetene – Centro de Tecnologias Estratégicas do Nordeste 9
BNB – Banco do Nordeste do Brasil S.A. 8
Infraero – Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária 8
AEB – Agência Espacial Brasileira 4
MTE – Ministério do Trabalho e Emprego 4
CGU – Controladoria-Geral da União 3
MDIC – Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior 2
CDP – Companhia Docas do Pará 1
Total 81.121
Fonte: Elaboração própria.
Fonte dos dados: http://www.acessoainformacao.gov.br/assuntos/relatorios-dados/informacoes-classifica - das/informacaoclassficada2015-xlsx.xlsx.
O valor qualitativo “GSI”, na Tabela 2, corresponde ao quarto órgão da Admi - nistração Pública Federal que mais des - classificou informações. Embora aquém dos três primeiros, está, igualmente, muito acima do restante.
Como se vê nos números totais das Tabelas 1 e 2, houve quase 90.000 classificações de informações e aproxi - madamente 80.000 desclassificações. Por parte dos órgãos de Inteligência de
Estado, esses números são aproximada - mente 8.000 e 1.500, respectivamente, ou seja, menos de 10% do total. Logi - camente que se esperava um número de classificações grande, porém o fato de haver quase 1.500 desclassificações também demonstra o alto grau de ob - servância do serviço secreto brasileiro ao direito de acesso à informação. Não menos importante é ressaltar o fato de que um documento estar classificado como sigiloso não quer dizer que ele
5 Cf. BRASIL, 2011, art. 29-30.
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Quando o segredo é a regra:
Atividade de Inteligência e acesso à informação no Brasil
está totalmente inacessível (BRASIL, 2011, art. 7º, § 2º), o que torna ainda mais presente o respeito ao princípio da transparência pública, mesmo quando o sigilo é a regra.
Conclusão
A primeira parte deste trabalho exami - nou a hipótese secundária de que o sigilo seria compatível com os regimes demo - cráticos, ainda mais quando existe um eficaz sistema de controle sobre a Ati - vidade de Inteligência. Assim, entende - -se que o primeiro objetivo específico – analisar a natureza democrática do sigilo característico da Inteligência de Estado – foi alcançado.
A segunda parte evocou a LAI e o regime constitucional e internacional de acesso à informação, para lançar luz sobre a Inte - ligência brasileira. Após apresentação e análise de dados, entende-se que não se pode refutar a segunda hipótese secun - dária, de que, no Brasil, o sigilo inerente à Atividade de Inteligência não obstaria o exercício do controle social democrático. Além disso, o segundo objetivo especí - fico – compreender a coexistência entre o sigilo da Atividade de Inteligência e o direito de acesso à informação no Brasil – é também alcançado. Resta, por fim, conhecer da conclusão sobre a hipótese principal e o objetivo geral apresentados na seção introdutória.
A simples existência de documentos – e partes destes – sigilosos não obsta o exercício de uma efetiva gestão pública e de um efetivo controle social da informa - ção, ainda mais quando o tema do sigilo das informações carrega consigo um vas -
to arcabouço legal e institucional de me - canismos de controles interno e externo.
Como este trabalho busca demonstrar, a coexistência entre o direito de acesso à informação e a Atividade de Inteligência de Estado pode ser justificada por dois grandes motivos que confluem para a manutenção – e o aperfeiçoamento – do Estado Democrático de Direito brasileiro.
O primeiro desses motivos aponta para o fato de que um cidadão desinforma - do sobre seu próprio Estado está pas - sível de manipulação/alienação, seja por parte de terceiros ao governo, seja pelo próprio governo. É mediante o princípio republicano e democrático da transpa - rência (CEPIK, 2003, p. 16) que esse mesmo cidadão pode “empoderar-se” de ferramentas e informações capazes de ajudá-lo a cobrar, eficaz e eficiente - mente, as autoridades públicas por seus atos e omissões.
O segundo motivo diz respeito à rele - vância da Atividade de Inteligência para a própria sobrevivência e a manutenção do regime democrático no Brasil, as quais podem ser, sumariamente, vistas na afirmação de que “[...]a mais impor - tante razão para a existência de uma es - trutura de Inteligência estatal é a produ - ção de análises e avaliações estratégicas de interesse para o processo decisório nacional[...]” (BESSA, 2014, p. 68). Logo, a inexistência tanto de acesso à informação quanto da Atividade de In - teligência põe em risco o próprio Es - tado brasileiro, seja em sua dimensão democrática, seja estratégica. É nesse sentido que Gonçalves (2008, p. 216) assevera que é “difícil discordar de que
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 12, dezembro 2017 47
Gills Vilar-Lopes
a atividade de inteligência é imprescindí - vel em qualquer democracia[...]”.
Após analisar considerável leque norma - tivo nacional e internacional, bem como doutrina brasileira sobre a Atividade de Inteligência, constata-se que tal Ativida - de de Estado não obsta nem o controle social nem o princípio da transparência pública, por, entre outros, não só levar em conta os princípios democráticos,
republicanos e de direitos humanos em seus considerandos e dispositivos legais, como também é o que demonstra seu trato com a informação sigilosa.
Diante dos aspectos acima analisados, chega-se à conclusão de que o Estado Democrático de Direito brasileiro não encontra impedimentos frente à Ati - vidade de Inteligência. Na realidade, ambos se legitimam.
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